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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

MANIFESTO


Dade Amorim


          Acredito na poesia como uma experiência que não para de se renovar, e ao longo do tempo pode tornar as pessoas melhores. O exercício da poesia induz o autoconhecimento, sem o qual ninguém sai do lugar. Dá a medida e o peso do que é preciso saber, porque ilumina a razão com a experiência mais íntima das coisas e dos acontecimentos. Aliás, poesia é acontecimento.

          Poesia não serve para rimar palavras ou burilar frases de efeito. Ela relativiza as defesas que criamos para nos aprisionar; remove as máscaras com que tentamos nos esconder ou nos engrandecer. Desmistifica toda fantasia que não exista para celebrar, mas para enganar os outros e a nós mesmos. O exercício da poesia revela a inutilidade de nossos álibis. É o par de asas a nosso alcance.

          Acredito profundamente na poesia, porque aproxima estranhos e diferentes, semeia um conhecimento para o qual não existem currículos bastantes, desperta o corpo e a alma das pessoas para uma liberdade que nada pode destruir, porque consegue dizer o que nenhuma outra linguagem comunica. Um bom poema é o simulacro de um momento na vida de alguém, com sua grandeza e fragilidade.

          Acredito na força da poesia, capaz de revelar a beleza de uma fruta, um corpo ou uma guerra; uma paixão ou um canto de casa empoeirado, a lama da estrada, as nuvens de chumbo – melhor ainda se o arco-íris não aparecer.

          E porque não se impõe nem obriga a nada, acredito que a poesia é a expressão mais verdadeira da difícil liberdade humana.


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

ENCONTROS E DESENCONTROS

Dade Amorim


          O modo como as imagens têm sido tratadas em nosso mundo frenético é inadequado e irreverente, porque teima em ignorar a dignidade do que se vê.
         Na linguagem do sonho as palavras se cristalizam em imagens. É frequente que um sonho apresente uma palavra – às vezes até uma frase – mas o que ela significa pertence à esfera subjetiva de quem sonha. Mistura-se às imagens com um valor equivalente, é parte do enigma do sonho.
          Se refletirmos nesse fenômeno, fica mais fácil perceber por que uma imagem nunca é a mesma para todos que a veem. Se isso é verdade, não se podem tratar as imagens como objetos fabricados em série. Palavra e imagem têm uma longa história de encontros e desencontros. Ambas estão ligadas à percepção visual e à memória. Ambas vêm impregnadas de sentidos e mensagens de variação infinita – que o digam Andy Warhol e Vick Muniz.
          A criação literária é o momento privilegiado da palavra, quando se convocam imagens e estados subjetivos em função de uma criação única e intransferível. A obra de criação é autobiográfica como o sonho, ainda que não seja confessional. O que se manifesta na obra de criação tem suas raízes firmemente cravadas na subjetividade. Há sempre um pouco de sonho na obra de criação.
          Palavra e imagem se fundem num texto que irá afetar de modos diferentes seus leitores. As pesquisas sobre o tema demonstram que a recepção individual do texto literário se dá em uma zona de condensação organizada por um inconsciente e sua subjetividade. Os elementos que contam para o indivíduo que lê vão além dos conceitos vigentes da cultura e dos preceitos de sua sociedade – embora esses fatores sejam de grande importância.
          A explicação disso se deve em parte à disjunção palavra-coisa. Descobrimos que fomos vitimados por uma série de separações, quando acontecimentos como perdas, mortes ou omissões se reduziam a palavras que deixavam escapar seu verdadeiro sentido. O passado não cabe nas palavras com que o evocamos porque não foi e não será como o recordamos ou falamos dele.
          Por sua vez, a imagem pode exibir acontecimentos em outra dimensão, mas a ilusão de seu poder também é um risco. Não vale mais nem menos que a palavra: é diferente. Os limites, os vazios, as imprecisões e a multiplicidade das palavras e da linguagem têm uma espécie de contrapartida na imagem. As palavras reduzem e atenuam o real que a imagem resgata. Mas é bom estar atento a um engano também nesse domínio. A imagem reproduzida e divulgada ao ponto que a vemos na propaganda e na mídia se destina a criar novas ilusões, porque a experiência que ela oferece não é a experiência do real. Enquanto representação do real, a imagem merece respeito. Rebaixada a vendedora de ilusões e propagadora da mentira, é uma fraude lamentável, que faz da ilusão uma razão de viver.
          Como em tudo nesta vida, o real tem que ser a medida de todas as coisas.

domingo, 4 de dezembro de 2011

A VIDA DE CADA UM

Dade Amorim
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É bem comum as coisas acontecerem fora das grandes linhas, muito mais na cabeça ou na pele das pessoas do que no plano objetivo. Jogando com palavras como quem joga com espelhos, pode-se chamar realidade a um conjunto de planos encadeados onde a imagem que aparece aos olhos do observador é fruto de um intrincado de outras imagens, total ou parcialmente invisíveis, por causa das quais se chega a ver alguma coisa, imagens que no entanto permanecem preservadas na penumbra dos aposentos, nas distâncias do tempo e do espaço e nos limites, voluntários ou não, do silêncio. É provavelmente o plano privilegiado do individualismo, porque é fácil nesse estágio dar de ombros para os outros. É fácil seguir adiante, e até já se consagrou essa atitude com o célebre não tenho nada com isso, e se ensina às crianças não se meterem na vida dos outros.
Mas é difícil dizer isso quando se vê adiante, quando se devassa o domínio que está por trás do primeiro plano, da imagem pública. Mais difícil ainda quando a imagem secreta extravasa e se mostra a olhos um pouco menos incautos.
O ser humano se identifica na imagem menos exibível do outro, no sofrimento do que poderia ser e não é, inspirado por sentimentos ditos nobres que acionam seus recursos, a bagagem de suas experiências, e o levam a querer resolver problemas que poderiam ser seus – ou aproveitar-se deles em benefício próprio.
A fraqueza de alguém serve no mínimo para exaltar o cavaleiro andante que há em cada pessoa. Mas para cada masoquista solto no mundo existe pelo menos um sádico atento.
Ninguém é somente uma imagem de primeiro plano. Por trás dessa imagem visível, a dos jornais, a dos olhos alheios, toda uma sementeira se plantou, o caleidoscópio girou muitas vezes, e o que o garimpo do tempo deixou passar foi, no mínimo, uma falsa pepita. Por isso, cuidado. Não se deve deixar grassar o engano.
Não se trata do lobo em pele de cordeiro que todos nós somos, ao menos de vez em quando. Trata-se de coisa mais sutil e imponderável. Coisa que pode fazer de um marido de muitos anos um completo estranho; de um amigo dos tempos de escola uma completa surpresa e de um filho um inesperado inimigo.
É importante que não se esqueça nunca de ir, progressiva ou retroativamente, colocando na balança os dados novos e tirando dela os que deixaram de existir (às vezes os dados se anulam uns aos outros). Mesmo assim, com todas as precauções, pode-se subestimar ou até deixar de perceber fatores importantes. E ter a surpresa de, na primavera, encontrar uma árvore seca e crestada, e no verão acordar sentindo frio.
Por isso é preciso registrar, de vez em quando, que as grandes linhas – nascimentos, casamento, filhos, separações, doenças e mortes – são a um tempo os dados da imagem pública, a biografia do homem civil e o resultado de uma montagem cujas peças começam na cabeça ou na pele das pessoas. Esses fatos civis, universais e noticiáveis têm uma estrutura íntima, imponderável, pessoal e secreta, que resulta em grandes paineis de mosaicos e cores só previsíveis se formos capazes das sutilezas de observação e autoidentificação.
Consegue-se tal observação com certa dose de isenção sem indiferença, solidariedade sem pena e lucidez sem frieza excessiva. E acima de tudo com raízes fincadas na certeza fértil de que ninguém é tecido por fio único, tem uma só cor ou brilha sempre com a mesma intensidade. Porque até nosso rosto é sempre outro, ao longo do tempo, e de nossos cabelos não se espera senão que embranqueçam.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

CONVERSÊ

Dade Amorim
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          Antigamente eu me aborrecia quando o cós de uma saia ficava muito amassado na reentrância da cintura. Agora tenho mais com que me aborrecer.

***

          Hoje encontrei anotado no verso de uma capa de apostila: “o que é espontâneo vive para sempre”.


***

          Naquele dia, precisava assistir ao jornal das quatro, que ia transmitir uma entrevista de Cosme, meu colega de turma na faculdade. Nos tempos da universidade, Cosme era um adolescente magrinho, moreno, descendente de índios do Amazonas; meio rebelde, inquieto, de olhos negros puxados. Naquela altura, porém, já se tornara um caboclo barrigudinho de barbas compridas e grisalhas, e exercia o cargo de curador de cinema no Museu de Arte Moderna do Rio. Tinha sido sempre um apaixonado por cinema, que ensinou a várias pessoas, a mim inclusive, o que era um grande filme. Conhecia as técnicas, a teoria do cinema como ninguém.
          Cosme foi um de meus maiores amigos do tempo de juventude. Esteve preso durante a ditadura, protegeu muita gente e seus amigos o adoravam. Não seria justo deixar de vê-lo naquele dia. Porque talvez ele não vivesse muito mais. Porque talvez eu não tivesse muito mais para viver. Um mês depois recebi a notícia de sua morte.

***


          Tudo que se consegue saber do futuro com relativa certeza é o que a meteorologia prevê. O que é bem pouco, tendo em vista o percentual de erros na previsão do tempo.

***


          O mais alto a que consigo chegar é quando procuro de todo coração entender alguém. Nesses momentos me sinto no nível dos cristais de chuva.

***

          Deve-se perder o presente em nome do futuro?



domingo, 6 de novembro de 2011

DO RIO

Dade Amorim
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O Rio tem um quê de inesperado. Aqui acontecem coisas difíceis de encontrar em outras cidades do mundo, até mesmo do Brasil. São traços de personalidade que os cariocas e seus amigos de fora vão absorvendo, à medida que se acostumam às ruas de bairros urbanos ou da periferia. São cenas típicas, sentimentos que se instalam na gente que vive aqui; paisagens que incorporamos ao dia-a-dia; costumes que se adotam sem saber bem por quê.

Nada mais característico do Rio do que essa sensação de gratuidade, esse contágio fácil que vai generalizando um jeito de viver e agir; que inventa hábitos, expressões, gírias que acabam incorporadas ao carioquês. O jeito de vestir irreverente, a informalidade. A vivacidade, uma espécie de astúcia malandra de procurar o que fica mais simples, mais à mão, o que soa mais despreocupado e casual. A alegria de viver que chega às raias da inconsequência. Um certo atrevimento. E mesmo no inverno, o descaramento de sair sem casaco num frio de dez graus. Ou de casaco e sandália havaiana. Só um carioca pode fazer questão de ignorar o guarda-chuva, faça o tempo que fizer. E só as (poucas) cotias do Campo de Santana não fogem das pessoas. Passa-se pela lagoa e lá está uma ave desafiadora na proa de um barco, e a gente para só pra ver um vôo se desenhar no meio do céu.

De repente, um poodle miniatura chama para a briga os pés de quem passa e todos se encantam por ele, enquanto sua dona segue adiante e deixa na calçada os dejetos do bichinho como se não tivesse notado. Ninguém como um carioca sabe se fazer de desentendido, quando lhe interessa. Ninguém desconversa melhor. E ninguém liga pra isso; há uma ética do desinteresse que sustenta a infinita tolerância carioca para com a contravenção, o crime, a bandalha, o relaxamento. O carioca é um leniente que perdeu o freio.

São cariocas os motoristas machões e marrentos e o poder desassombrado dos pivetes de qualquer idade. O carioca é cheio de saídas criativas. Improvisa, programa só pra não cumprir e não cumpre horários, a não ser que o emprego seja dos bons. Pode conviver com o caos e a promiscuidade das ruas, dos bares, das boates sem perder uma ponta de compaixão e uma leveza que recria pessoas e ambientes, mas de repente se invoca por qualquer bobagem e parte para a briga.

É bem a nossa cara virar padrinho de um garoto de rua, ficar inteiramente eufórico por isso e depois perder o afilhado de vista. Acreditar cegamente em alguém só porque tem uma boa conversa. Apaixonar-se de repente por alguém que nunca viu. Fazer amizades instantâneas como se morasse no paraíso.

E no entanto o paraíso carioca é cada vez mais apenas uma linda paisagem. Parece que as virtudes cariocas criaram raízes tão enormes que, com o passar do tempo, viraram um cipoal em que se tropeça a toda hora e atrapalha a vida. Porque uma virtude é o extremo oposto de um defeito, e acontece que os extremos sempre se tocam.

domingo, 23 de outubro de 2011

LOUCURA E TALENTO FAZEM ESQUINA EM ALGUM LUGAR

Dade Amorim


          Sabe-se a importância da loucura ou o que se chama de loucura, quando ela é engendradora, mãe da criação em tantos casos. Exemplo disso é o cara que abandona poderes e dinheiro fácil para viver dedicado a sua arte e produzir seus parangolés, mesmo apanhando e sendo discriminado entre seus contemporâneos. Em especial um certo tipo de crítica em que a frustração e a inveja são os móveis mais atuantes.
          Se entregar à loucura e se dar bem com a crítica às vezes é impossível em vida, a não ser que se encontre alguém tão abençoado como a doutora Nise da Silveira, desinteressada de tudo que não fosse a salvação de seus pacientes. As gerações contemporâneas desses talentos acima da média (embora nem sempre loucos, diga-se) costumam jogar tomates e pedras nas inovações que não conseguem compreender – tão aí Oiticica, os irmãos Campos e Bandeira, Rosa, Vianna, Rimbaud, Baudelaire e tantos outros que não me deixam mentir.
          Mas a crítica póstuma costuma rever as primeiras reações da galera e reconhecer o talento. Muitos desses loucos frutíferos têm até seguidores que fazem questão de comparar a própria insânia com a do artista famoso, em quem o excesso de libido e energia psíquica se metamorfoseou em criação. A loucura sublimadora, a que transforma o mundo da experiência sensível em uma supra-realidade tocada pela beleza e/ou pelo horror que fervem dentro do artista, acaba sempre se impondo de algum modo.



segunda-feira, 10 de outubro de 2011

RIR, VERBO CIRCUNSTANCIAL

Dade Amorim


          Nunca vi um verbo tão advérbio quanto esse. Tudo que se faz ou diz pode ser modificado ou condicionado, já se sabe, mas rir é demais. Por natureza pouco conspícuo, muda de sentido dependendo da preposição que o acompanhe.
          Se você disser rir de, pode estar se referindo a uma piada, a alguém – por brincadeira, ironia, deboche ou calhordice – ou a si mesmo, caso em que demonstra um espírito amadurecido e um caráter forte, já que poucas pessoas são capazes de rir de si mesmas. A maioria prefere que os outros chorem junto ou acha seus defeitos ou problemas sagrados demais para merecer qualquer forma de riso. Em alguns casos, no entanto, rir de pode ser uma forma de apoio e até sinal de carinho, demonstrando que o outro está entendendo e tentando aliviar uma saia justa.
          Rir para alguém pode significar simpatia, tentativa de abordagem ou paquera; mas se o objeto do riso é uma imagem ou coisa, ou se ri para o nada, você pode ser um delirante, aparvalhado ou estar sob forte emoção, o que é quase a mesma coisa. Já rir com é uma prática das mais saudáveis, porque é o primeiro passo para um convívio ameno, a formação de uma amizade ou a revelação de uma grande afinidade com alguém. Faz muito bem à cabeça rir com outra pessoa – é o antônimo mais perfeito de solidão que eu conheço.
          Talvez por isso se diga que o homem é o único animal que ri. Tamanho espectro de significados para um só verbo é coisa de gente, por mais que alguns animais, como o cachorro, em momento de euforia, pareçam estar rindo, acho arriscado imaginar que saibam que riem e impossível acreditar que sejam capazes de tamanha polissemia.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

LIBERDADE PARA PENSAR

Dade Amorim
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Às vezes fico assombrada com a uniformidade de determinados discursos. Vivemos à sombra de um emaranhado de ideias e pontos de vista ditados por interesses que não conhecemos e não são os nossos. Não dá para confundir gestos e atitudes impulsivas com opiniões próprias.

Há uma diferença sensível entre o que de fato acontece na vida real e o que chega a nosso conhecimento via mídia. Aderimos um pouco sem sentir à opinião de um ou outro colunista que admiramos, pelo que sabemos dele e por suas ideias. Até aí, tudo bem. Mas é preciso cuidado com o efeito cumulativo desse processo. Acabamos nos condicionando a pensar pela cabeça dos outros, o que não se recomenda, por melhores que os outros sejam.

O risco da pressão que a mídia e as opiniões recorrentes exercem sobre nós é maior do que normalmente se imagina. Fica muito fácil pensar como todo mundo – afinal, por que ser diferente? Conheço pessoas que se escandalizam com posições discordantes daquelas da maioria que as cerca. Isso corresponde mais ou menos ao que se costuma chamar de senso comum. No entanto, o senso comum é um dos piores inimigos da liberdade de pensamento e do bom senso, justamente por ser um dos maiores responsáveis por essa cultura deficitária e desfalcada que predomina em nosso país.

Sem informação, com a pouca instrução que a escola nos garante e viajando nos universos da tevê e das revistas comerciais e alienadas que nos cercam, como juntar as peças para um raciocínio mais alerta? Como entender realmente os fatos, assumir uma atitude diante deles, ter uma opinião clara e definida?

Afinal, penso o pensamento de quem? Se é o meu, preciso ficar alerta para avaliar até que ponto a influência dos outros está me impedindo de pensar e agir de modo coerente com o que realmente desejo e espero da vida.



segunda-feira, 12 de setembro de 2011

BRAVO SR.,


Dade Amorim
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Antes do Google, quando queríamos responder a uma mensagem ambígua, ficava bem difícil descobrir a identidade do remetente. Agora, a busca ficou mais fácil, embora nem sempre seja bem-sucedida. Pena. Preferia ter acertado na salsicharia. Mas parece que, embora seja um músico, e pelo jeito dos bons, dada a paixão que manifesta pela atividade, o senhor tem um homônimo nesse ramo.

Conforta saber que tem uma ghost-writer na família, que leu Budapeste e gosta de música. Coisas em comum facilitam o entendimento.

Espero que tenha entendido que essa imagem do esgoto irrita um pouco. Nunca vi o trabalho por esse lado, embora a metáfora possa até valer em alguns casos.

A Verdade, eu confesso que não conheço. Conheço sim algumas verdades, assim minúsculas, em geral o oposto de mentiras igualmente terrenas. E a Dignidade é coisa inacessível (parece conceito da metafísica platônica). A dignidade, a minúscula, para mim é trabalhar sem ser escravo, levar uma vida minimamente decente, ter um endereço, saber respeitar e ser respeitado.

Sem mais,

CT


Obs: Imagem enviada pela autora.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

DA URGÊNCIA DE VIVER



Dade Amorim
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          Em uma palestra proferida em 1987 para estudantes de cinema, Gilles Deleuze aponta nos personagens de Dostoiévski, filmados por Akiro Kurosawa, uma forma de agitação pela qual estão sempre vitimados pela urgência: “Tânia me espera, é preciso que eu vá”, ou “É um incêndio, é preciso que eu vá” – mas qualquer incidente ou encontro casual com alguém os leva a esquecer a pressa e o chamado. Isso acontece porque, ao mesmo tempo em que são presas dessa urgência, os personagens do autor russo “sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual”. Essa noção de que há um problema mais profundo do que aquele da circunstância do momento paralisa os personagens e os desperta para alguma coisa que, embora não definida, é ainda mais urgente. O próprio Kurosawa tem em seus filmes essa marca dostoievskiana de criar personagens inquietos, que se metem em situações incríveis, mas nunca perdem o sentido dessa “coisa mais urgente” que está além de tudo e é a mais importante de todas.
          Isso configura uma atitude basicamente filosófica diante da vida. Vamos dizer que os fatos do dia-a-dia são matéria de informação, e essa “coisa mais urgente” seja matéria de contra-informação efetiva, para usar as palavras de Deleuze, porque resiste aos fatos cotidianos e corriqueiros, vai mais além da opinião e da ação imediata.
          A sociedade em seus mecanismos de controle não está além do cotidiano; muito ao contrário, dobra-se sobre o cotidiano para mantê-lo dentro de suas normas. O controle se exerce com objetivos pragmáticos, para conseguir resultados concretos. Por isso Deleuze define a arte como ato de resistência à sociedade de controle. Mas não é só isso. Ele se reporta a um conceito de André Malraux: a arte é a única coisa que resiste à morte. O exemplo que ele invoca é bem significativo: uma estatueta de 3 mil anos antes de Cristo ainda causa prazer por sua beleza, e no entanto passaram-se milênios de civilizações e culturas diferentes.
          Considerando que a morte é um controle da vida, no sentido de uma limitação imposta, pode-se estender esse conceito até mesmo a gestos e símbolos de resistência que, se não são necessariamente obras ditas de arte, mantêm com elas uma afinidade de significação nos modos como se originam e como afetam a sensibilidade humana. Mas existe sempre, em toda obra de arte, um traço de resistência, de avanço em relação a sua época e de perenidade, no sentido em que ela vale para outro tempo muito além, talvez para sempre, o que é muito para se dizer. Por isso Paul Klee, o pintor, dizia que toda obra de arte faz apelo a um povo que ainda não existe.


Obs: Imagem enviada pela autora.


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

DROGUE-SE



Dade Amorim
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Entre as substâncias capazes de lhe provocar viagens inesquecíveis e nunca – mas nunca mesmo – uma bad trip, chamo a atenção para algumas ao alcance de todos e que não trarão nenhum prejuízo financeiro, moral ou neurológico. Olha só: se você estiver no Rio, vá até o Arpoador ver o pôr-do-sol. Junte-se aos viciados que quase todo dia se encontram lá para provar os efeitos do visual. A única despesa pode ser talvez a passagem ou o combustível, mas até o estacionamento é grátis e não há consumação ou couvert artístico. (E não venha me dizer que nada disso envolve “substâncias”. Nem preciso dizer que o meio ambiente está carregado delas, e que as sensações que provocam mexem com suas sinapses sem destruí-las ou lesar suas funções, viu?)

Encher a vida com pequenas alegrias pode funcionar muito bem: um hobby, uma coleção, um canto da casa para curtir o que você mais gosta.

Você pode por exemplo andar pela floresta e, no meio daquele silêncio absoluto (não é o absoluto o que se busca nas drogas?), ouvir algumas vozes que com freqüência parecem cintilar ou entoar alguma música, em geral deliciosa para os ouvidos e muitas vezes intrigantes, verdadeiros desafios de som. Acresça-se a leve brisa e o visual do lugar, e as sensações mais gostosas tomam conta de você.

Quer ver outra droga de efeito? Olhe para o céu com vagar e toda sua atenção. A qualquer hora ou lugar de onde possa. Lembre a criança que ainda existe em você e analise as formas das nuvens mutantes. As crianças têm uma fórmula toda própria de curtir as coisas, o mundo a sua volta. Pena que nem todas possam se entregar a esses momentos de leveza e puro prazer. Um adulto pode evocar esse estado de bem-aventurança para ver o mundo com olhos infantis, não pode? Procurar distinguir as tonalidades que o céu apresenta, em especial de madrugada e à tardinha, e se for possível fotografar o que vê.

Sempre que puder, olhe também para o mar, de qualquer ângulo e a qualquer momento. Ele garante um tempo de paz ou arrebatamento em que você pode mergulhar sem medo e esquecer seus problemas, angústias, medos e contas vencidas.

Se ainda estiver acordado, for plantonista ou sofrer de insônia, ou ainda se gostar de pular cedinho da cama, viva a madrugada. Mergulhe nela inteiro, sinta seus cheiros, ouça os sons de seu silêncio; observe a luz, o céu, as árvores; escute e veja os pássaros.

Há ainda outras opções, como exposições ou a arquitetura de sua cidade, antiga, neoclássica ou contemporânea. A diversidade dos bairros, a beleza e o aconchego de certas ruas e ambientes. O desenho das montanhas. O sorvete da Shaika, lugares gostosos de ficar e onde se podem reviver os sabores que nos deram tanta felicidade.

Outras opções podem lhe ocorrer, é só querer usar a imaginação. Assistir a bons filmes, escolher uma peça de teatro, ir a um show, dançar. Ler o que lhe dá mais prazer. Livros não faltam, nem bons autores. Livrarias ótimas, sebos perfeitos onde você se sente tão à vontade que pode até tirar os sapatos ou levar uma cadeira de praia para escolher com mais conforto sem gastar mais que o possível ou até menos. Sem falar das atividades que o envolva inteiro e que, mesmo não lucrativa, lhe dê um enorme prazer e o faça sentir-se realizado – pesquisas, artes plásticas, música, escrita, moda, teatro... ou economia, quem sabe?

Existem atividades capazes de amenizar o sofrimento de pessoas menos afortunadas, e com certeza tais atividades irão tomar muito do tempo de quem se envolva com elas, porque os que precisam de atenção, carinho e socorro existencial são muito mais numerosos do que se imagina. Se alguma dessas funções lhe parece motivadora, não deixe que se perca esse potencial. Entrar em contato com crianças, velhos, doentes, internados sem esperança de cura e todo tipo de gente desvalida talvez lhe dê um tipo de alegria muito especial. É preciso uma vocação, mas talvez você nunca a descubra se fugir desses contatos e perca a chance de espalhar um pouco de alento para quem precisa – e como se precisa!

E os papos com aqueles amigos do peito que curtem os mesmos assuntos? E os planos de reforma do apartamento, a vontade de fazer alguém muito feliz, a expectativa de um encontro que promete bons momentos?

A lista pode não acabar nunca, porque o melhor guia para conseguir acesso a um barato incomparável é sua própria imaginação. Sendo assim, vamos combinar que é uma burrice enfrentar as caras feias e os fuzis dos hômi. E se o que você mais deseja é o desafio do perigo, pratique um esporte radical ou entre para a polícia. Ou para a política. Ou então se envolva na investigação do caso Celso Daniel.

Emoções e sensações prazerosas são um pressuposto da vida. Mas se a gente só as consegue à custa de uma substância estranha ao próprio organismo, alguma coisa não está funcionando como devia. A vida não é simples, a gente sabe, e existem coisas capazes de interferir em nossa capacidade de aproveitar tudo que ela nos oferece. Mas nesses casos, será que a droga pode resolver – ou será que vai complicar ainda mais as coisas?

Melhor dar um pulinho ao Arpoador.


Obs: Imagem enviada pela autora.


domingo, 31 de julho de 2011

VISUAIS – OS IMAGINÁRIOS E OS VIRTUAIS


Dade Amorim


Estou do Adolfo Bioy Casares, A invenção de Morel, em tradução de Samuel Titan Jr., editado pela CosacNaify em 2006.

Nestes tempos de delírios visuais, imagens vertiginosas que supostamente dispensariam as palavras e se autoexplicariam sem maiores delongas, este livro – um cult da literatura internacional, de trama considerada perfeita por Jorge Luís Borges, amigo de Casares, seu parceiro e admirador – é um exemplo de que o uso das palavras é uma fonte de recursos que as imagens por si sós nunca vão suprir. Ainda por cima fala justamente de imagens, tão poderosas que foram capazes de subverter a vida do protagonista, um fugitivo político da justiça que se esconde em uma ilha deserta.

Os enigmas de A invenção aguçam a atenção do leitor e o impelem a perseguir o fio da narrativa, que em alguns trechos parece perdido entre as folhas secas do chão da ilha. O caráter teleológico que alguns emprestam ao texto de Casares pode ser discutido. Dificilmente uma literatura tão perfeita e enxuta poderia visar outra finalidade que não ela própria. Mas para o leitor atento fica bem claro que estão em jogo fatores imanentes ao ser humano, como a percepção nem sempre confiável e a imaginação que se alia ao desejo para lhe pregar peças – às vezes de mau gosto.

Em jogo também está a questão da sobrevida ou da própria eternidade. Mas não se trata aqui de uma eternidade metafísica, e sim da projeção de uma idéia que tem fascinado o homem através dos tempos, idéia que teria impulsionado o personagem Morel em sua invenção maravilhosa e terrível. A fábula explora um ângulo fenomenológico da experiência da imortalidade, que quase sempre tem sido abordada com visada mística ou filosófica. Os personagens em cena se opõem à realidade que estariam manifestando pelo simples fatos de não serem senão espectros de si mesmos. É fascinante, porque é como um filme interferindo no roteiro de outro filme. Mais do que simplesmente descrever os fenômenos (o que Casares faz com perfeição e apelo para o leitor), o livro capta o que se poderia chamar a insustentável leveza da ilusão, parafraseando Kundera, e todo o sofrimento humano que ela implica.

O prólogo é de Borges e o posfácio de Otto Maria Carpeaux dão o toque especial a esse primeiro volume da coleção Prosa do Observatório, coordenada pelo escritor e teórico de literatura Davi Arrigucci Jr.


Obs: Imagem enviada pela autora.

domingo, 17 de julho de 2011

PONTOS DE VISTA


Dade Amorim
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Teoria deleuziana do simulacro: o simulacro não mais representa o original, porque não se identifica com ele, mas é uma presença em si e traz a estranheza de sugerir aquele objeto primeiro. À representação corresponde a cópia, modelo por excelência do original. A simulação só pode gerar presença, porque o simulacro não representa nenhum objeto, apesar de podermos ler nele os signos presentes no original e na cópia:
...“é o seu próprio símbolo, isto é, o signo na medida em que ele interioriza as condições de sua própria repetição. O simulacro apreendeu uma disparidade constituinte na coisa que ele destitui do lugar de modelo”¹ .
Se no simulacro apreendemos a diferença, ele passa a ter tanto valor quanto o modelo, e passa mesmo a ser modelo, porque traz nele o entendimento do que é diferente, do que pode ser separado do modelo e, portanto, do que pode ser uma nova singularidade. Se o “objetivo supremo da dialética é estabelecer a diferença”² , o simulacro é parte fundamental dessa dialética, e não pode sofrer hierarquização em relação ao modelo ou sua cópia. “O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução”.³
Definição quase paralela:
"Poesia é uma coisa que não é a mesma coisa, mas é igual." Beatriz Bruno Antunes, quatro anos.
_____________________________

¹ DELEUZE, G. “A Diferença em Si Mesma”. In: Diferença e Repetição. Trad.: Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, 4. ed. p.63 - 125.
²Id. p.122.
³ Id. p.267.


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domingo, 3 de julho de 2011

MULHER ESCREVENDO


Dade Amorim


          Escrever era só a sobra. O que restava depois que o dia ia se cumprindo e ela cumpria seu papel – a casa bem cuidada, as garotas na escola, o almoço bem temperado, a roupa limpa e guardada, não fossem os vizinhos – ou pior, o marido – chamá-la de relaxada. Tinha uma reputação a cuidar. Dias ainda havia para as compras, estantes e tanta coisa por limpar e arrumar. E sempre, sempre os eternos ciscos, migalhas nas bancadas da copa, poeira aqui e ali, a gordura no fogão. Tinha empregada, sim, mas essas empregadas cada dia fazem menos e saem mais cedo, uma lástima: todas relapsas.
          E ao fim do dia, os momentos de ócio necessários para azeitar as idéias e deixar fluir certa energia semicósmica – porque em parte vinha era de dentro. Nem sabia se era mesmo energia: era mais concreto, como liberar alguma coisa física, um miniparto. E porque nada ainda estava dito, era então preciso colher palavras, limpar a terra, o sangue, a aura estranha, revirá-las sobre o teclado e plantá-las no monitor entre as outras, em sequência de alguma lógica, às vezes nem isso. Sentir e pesar seu efeito, seu tempo de validade, porque às vezes ficavam murchas, pobres, indigestas ou indigentes de sentido, caso em que nada resolviam de sua necessidade: as palavras são como as cores para o pintor. Há um efeito final a levar em conta que, esse sim, vem de dentro, e é preciso ser-lhe fiel. Então deixava passar um tempo e voltava a elas, as palavras. Assim podia ter uma idéia mais clara do que estariam fazendo ali, corrigir algum rumo sem destino como um piloto em voo. O voo era sempre meio cego.
          Havia tardes e noites em que as palavras pareciam fluir tão facilmente, e ela enchia páginas e páginas seguidas, contente, realizada, achando o tempo um sonho. Mas não durava muito e a dor secreta dos dias voltava a se insinuar. A dor era sempre, não cessaria nunca e se expressava de um jeito surdo, devorando as entrelinhas. Chegava de leve, depois aumentava de intensidade e afinal causava um mal-estar que a obrigava a se curvar como quem carrega um peso maior que suas forças. Então às vezes apareciam poemas no monitor.


Obs: Imagem enviada pela autora.

domingo, 19 de junho de 2011

VERDADES E MENTIRAS

Dade Amorim
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Alguém já disse

se for mentira
não temas
: nada ameaça mais
do que a verdade


Não tenho muito medo da mentira. Ela pode ter consequências maiores do que se imagina, é verdade, e fazer um estrago em nossa vida. Mas acredito que nada ameaça mais a gente que a verdade – aquela verdade que você gostaria de manter bem escondida dos olhos alheios. Talvez nem seja tão terrível assim – ou pode ser que seja. O que importa é o que representa para a gente ter marcas de acne na pele, por exemplo, mau hálito ou gordurinhas indevidas para a imagem que você considera ideal. Nem sempre porém o mal é assim tão inocente.

Os outros podem ver o que você gostaria que não vissem. Mas pode ser que te traumatize mais que esse defeito seja comentado com maldade do que uma mentira mal-intencionada, da qual você pode se defender com unhas e dentes, provar que não passa de uma lamentável invenção e ainda sair muito bem aos olhos de todos. De quebra, o mentiroso talvez sofra mais do que você mesmo.

A literatura e a vida estão cheias de exemplos do que a intriga e a malícia alheia podem fazer a uma pessoa. Há boatos e fofocas que denigrem a imagem de alguém, que são difíceis de apagar e repercutem na vida. Mas por mais que se sofra por causa de uma falsidade, nada é pior do que ver divulgada uma verdade difícil de admitir e que se gostaria de revogar. O mal cresce, a auto-estima do indigitado encolhe e, dependendo da natureza da coisa, ele ou ela se sentem destruídos de um jeito difícil de se reerguer.

domingo, 5 de junho de 2011

PAPEL DE PRESENTE

Dade Amorim
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Uma linda folha de papel de presente dá vontade de presentear alguém. Parece um pouco com o que se convencionou chamar de vocação: a tendência que motiva uma pessoa a fazer o necessário para realizar seu desejo.

Houve tempo em que a palavra era entendida de modo mais radical; dizer que alguém tinha vocação pra isso ou aquilo devia ser entendido como um chamado irresistível vindo não se sabe bem de onde. Até do céu, no caso da vocação religiosa. Hoje é ponto pacífico que qualquer vocação dispensa apelos transcendentais: a coisa vem de dentro do intrincado individual das características genéticas e adquiridas.

Um chamado divino dificilmente explicaria a quantidade cada vez maior de padres, pastores e freiras que um dia se cansam da vida dedicada exclusivamente ao Senhor e à igreja de que fazem parte. A vocação deles foi um engano? E – muito pior que isso – quando padres, pastores ou freiras se deixam levar pela tentação mais hedionda e, em vez de apascentar suas ovelhinhas como se esperava que fizessem, as usam como pasto? Por que esses religiosos deixam de agir como líderes espirituais para trair a confiança de seus seguidores? Humano, demasiadamente humano.

Vocação para o magistério é outra expressão que soa meio grandiosa, diante das dificuldades da carreira – salários baixíssimos, condições precárias de trabalho, clientelas difíceis de lidar. Os próprios alunos criam obstáculos ao trabalho do professor, tanto nas escolas públicas quanto nas particulares: uns ameaçam pelo potencial agressivo dos podres poderes a que estão às vezes muito ligados; para outros, nas escolas “da Zelite”, o aluno sempre tem razão, porque sem ele não haveria recursos para manter a escola, pagar salários e obter lucro. E o professor vê seus lindos conceitos relegados a segundo ou quarto plano por conta de interesses, digamos, bem mais concretos.

Nas carreiras liberais ou artísticas, pode haver grandes compensações, talentos reconhecidos em áreas diversas, políticos realmente íntegros e dedicados ao bem comum (são raros, mas existem). Mas as frustrações são mais frequentes. Depois de todos os esforços e investimentos, se a carreira não deslancha, é preciso desistir do caminho escolhido e suportar o tédio de um trabalho que nada tem a ver com o desejo de quem sonhou muito alto ou, como é comum, ficar patinando na sombra sem o reconhecimento que se imaginava conseguir. Numa sociedade que sonha continuamente com a fama e o sucesso, pode ser deprimente.

Um dos exemplos mais gritantes de fracasso que se conhece foi Vincent Van Gogh, que viveu à custa do irmão generoso sem conseguir vender um quadro, enquanto realizava uma das obras mais grandiosas de que se tem notícia nas artes plásticas de todos os tempos. Tomara que exista vida depois da morte, para que ele veja o tamanho de seu triunfo. Não poucos nomes famosos tiveram destino semelhante ou sofreram limitações que os impediam de trabalhar: Beethoven ficou surdo; Kafka, sempre enredado em seus labirintos de desespero e depressão; nosso Aleijadinho, trabalhando mesmo com o corpo deteriorado pela hanseníase que o devorou em vida. Gente que tentou e conseguiu ir além do que se pode esperar de um ser humano, como Nietzsche, Galileu e tantos mártires de origens e naturezas diversas, provam o quanto é temerário ignorar os poderosos e ousar ir além da mentalidade de seu tempo.

Vocação não é tudo: é só o papel bonito, que dá vontade de embrulhar um presente. Mas nem sempre se encontra ou se pode comprar um presente à altura do papel. Mais importantes são a persistência, a tolerância diante dos fracassos eventuais, saúde e realismo para contornar as dificuldades e a incompreensão. Mesmo sem grandes glórias, resta o papel bonito para contemplar, renovar o sonho e proteger a auto-estima.

domingo, 22 de maio de 2011

O TIGRE DE CORTÁZAR

Dade Amorim


          Em Bestiário, um conto de Julio Cortázar, a narrativa começa num clima que seria familiar e confortável, não fosse o estilo vivo do escritor, que não o deixa cair no previsível ou entediante. Através da perspectiva da personagem principal, a menina Isabel, a história se inicia nos olhares um pouco enigmáticos entre sua mãe e Inês, supostamente uma criada de confiança.

          Isabel é convidada para as férias em casa dos Funes, no campo. A mãe e Inês relutam em consentir que ela vá, embora isso já tenha acontecido antes. A essa altura, Inês comenta que “nem é por causa do tigre”, mas porque se trata de uma casa triste. Imediatamente se acende um alerta: não é usual que uma casa de campo abrigue um tigre. Alguma coisa está portanto fora de ordem.

          Além dessa figura insólita, a expectativa de Isabel quanto às férias, o primo e a viagem, toda descrita em imagens que parecem flutuar no texto, independentes umas das outras, e são como tomadas de um filme, oferecidas ao leitor sem que se perca o caráter literário do conto. Pelos olhos da menina, o não sentido se justifica e se instala.

          O tigre vai ser citado em diversas passagens, de modo que ninguém – autor, moradores da casa ou leitores – se esqueça de sua existência. Enquanto o capataz não avisa onde está o tigre naquele dia, ninguém sai de seus aposentos ou circula pela casa. Não está visível; depois do aviso do capataz, o aposento ou área do jardim fica interditado por sua presença.

          Esse fato por si só seria motivo de estranheza, mas através do olhar da menina de nove anos é visto com naturalidade. Assim como “a hora da penumbra”, quando, deitada para dormir, ela vê passarem as imagens do dia, as que lhe dão medo, como o formicário, um grande vidro com terra e formigas, onde ela e o primo de sua idade fazem “pesquisas” e que a assusta um pouco à noite, porque se torna uma presença estranha e pesada dentro do quarto depois das luzes apagadas. Mãos, expressões, olhares, palavras mal assimiladas e todo tipo de vestígio do dia passa pelos olhos de sua fantasia, enquanto não pega no sono.

          O tigre, não. A presença do tigre, diariamente lembrada e localizada, parece ser aceita passivamente pelas crianças – e adultos – sem que aparentemente perturbe a ordem da casa. Se está na sala de jantar de cristais, e então ninguém entra naquela sala e janta-se em outra. A casa é grande o suficiente para acomodar o tigre, os moradores e seus interesses.

          A verdadeira história no entanto está condicionada à figura do animal invisível, e é todo um drama com doses de violência, sexo e ciúme que permanecem protegidos pelo silêncio do olhar infantil, assim como o tigre permanece oculto. A verdadeira relação entre os personagens adultos da casa é denunciada por pequenos detalhes que, aos olhos da menina, tornam-se primeiro enigmáticos, mas são interpretados afetivamente, quando capta a existência de uma tensão oculta como o tigre.

          Esse tigre oculto – pulsão de morte – é um significante perfeito, porque seu significado é ambíguo o bastante para dar o tom da história e catalisar todo o peso que poderia torná-la uma narrativa “imprópria para menores”. Ao mesmo tempo, como o clímax aponta, ele fala também de uma pulsão destrutiva capaz de ser mobilizada até em nome de um impulso amoroso.

domingo, 8 de maio de 2011

FRÁGIL É O LEITOR

Dade Amorim
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          Gaiman, Neil. Coisas frágeis. Trad. Micheli de Aguar Vartuni. São Paulo: Conrad, 2008.


          Isto não é propriamente uma resenha. Faltam rigor, isenção e distanciamento. Por isso, tenho que confessar que escrevo este comentário sobre Coisas frágeis, de Neil Gaiman, ainda intoxicada de admiração e entusiasmo. Houve momentos durante a leitura em que tive vontade de ser Gaiman. Não queria os prêmios dele, que fez tudo por merecer, e acho até que foram poucos. Não queria o renome, a juventude dele. Queria tão só ter sido capaz de escrever esse livro.
          Há muito tempo não releio uma obra. E tenho lido coisas muito boas, como os poemas de Leonardo Fróes, obras de Enrique Vila-Matas, Amós Oz, Dino Buzzati, Ricardo Piglia. Também nunca fui muito chegada a fantasias, bestsellers ou não. Raramente gostei de uma história que fosse além da realidade como a conhecemos, e assim de pronto só me lembro de ter adorado A outra volta do parafuso, de Henry James (acaba de sair no Brasil Os Embaixadores, um de seus últimos livros, tido como uma das obras-primas de James), ou as histórias simbólicas de Italo Calvino. Mas tanto uma como as outras não pretendem assustar, fazer profecias ou causar espanto a ninguém. Ultrapassam a realidade conhecida com um objetivo ficcional, e acredito que seja esse o motivo principal de conquistarem o leitor com sua prosa surpreendente, mas não escapista ou alienante.
          Coisas frágeis, no entanto, é bem mais que um livro que se dá ao luxo de recorrer ao sobrenatural para reforçar um enredo, como acontece com o romance de James, ou exaltar a poesia das cidades, como faz Calvino em As cidades inisíveis, inventando lugares inexistentes para reavivar sentimentos e emoções que tratamos como lugares comuns no cotidiano ou no máximo merecem poemas repetitivos. Coisas frágeis simplesmente vai além da fronteira dos sentidos quase como uma homenagem ao sensível – o que à primeira vista pode parecer paradoxal.
          Acredito que toda a beleza soturna e estranha dos contos de Gaiman esteja baseada numa fabulação que não só desce às profundezas da dor humana como no conto “Lembranças e tesouros”, mas também na criatividade inacreditável de textos como “A vez de outubro”, “Os fatos no caso da partida da senhorita Finch” ou “Golias”, que ele escreveu por encomenda, para a divulgação do filme Matrix. Um livro verdadeiramente imperdível.

domingo, 24 de abril de 2011

SABER E COMPREENDER

Dade Amorim
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          Depois que se está caindo de saber alguma coisa, torna-se cada vez mais indispensável mobilizar recursos que não se limitem a repetir números e teorias. Chegou a hora de tentar compreender.
          Compreender é bem diferente de saber. Saber alguma coisa é sempre multidisciplinar, pressupõe uma atitude acadêmica e não abre mão de estatísticas e que tais. Saber é, por definição, eximir-se por abstração, tornar impessoal um fenômeno ou um feixe deles. Saber rende entrevistas, livros muito vendáveis, nomes em destaque, respeitabilidade e certo charme midiático. Saber é duro, frio e multifacetado como um labirinto em cujos corredores ninguém se perde, porque traz marcados os passos e aponta direções de forma nítida. Um labirinto sem Minotauro.
          Compreender vem por outra via. Às vezes nem é a posteriori, como no caso do saber, é simultâneo. E é um labirinto passível de perdição. Pode inclusive dispensar os saberes, o que nem sempre é conveniente, mas pode. Compreender é, no primeiro momento, para uso interno, mas quase sempre mobiliza e frutifica em ações. Compreender é muito arriscado. Usando um exemplo concreto, é como um trem que descarrila e só se entende exatamente qual a razão encostando a cabeça no chão, ao lado dos dormentes, e vendo o ponto exato onde se deu o desencontro; passa-se o dedo no lugar do desnível e se percebe o grau do impacto, o jeito melhor de evitar que se repita e outros pequenos detalhes, partes de um todo que vão muito além do saber puro e simples.
          Compreender não é respeitável no sentido oficial do termo. Compreender é querer ir adiante. Ter vontade de ser aquilo que se resolveu compreender. Estar ali presente, inteiro, e deixar desprotegido o coração. Compreender dispensa desdobramentos constrangedores, entrevistas de telejornal, depoimentos de pessoas na hora em que estão sofrendo; dispensa formulários e presença da mídia, porque acontece em silêncio, sem precisar exibir o óbvio nem repetir o que todo mundo vai perceber. Compreender é sempre pelos cinco sentidos, sem falar nos sete da sensibilidade mais fina. Por isso dispensa pronunciamentos oficiais e aguça a empatia, a intuição, o sentir com, o ver com olhos de ver.
          Não é que o saber seja inútil. Longe disso. Mas ele vale muito mais, humanamente falando, quando ajuda a compreender, tem interesse e existe em função da compreensão. Há quem ignore isso. Há quem negue isso – e aí já entra a malícia humana – e finja se escandalizar com essa ideia. Mas é que sem a compreensão, o saber é quase nada na ordem natural das coisas, à qual pertencem o bem-estar, o desejo humano, a paz interior e outros bens infungíveis.
          Saber que não visa compreender é como mudar de assunto quando não interessa continuar uma conversa. Saber assim produz apostilas, ensaios, monografias, livros e publicações especializadas; anais de congresso e seminários. Se ninguém no entanto precisar desses dados para compreender melhor alguma coisa ligada a gente, eles serão certamente consumidos pelo fogo frio da inutilidade que arde invisível em milhares de estantes, bibliotecas e depósitos de papel esquecidos pelo mundo. Um fogo cujas chamas podem congelar os que têm o saber como meta final e se encerram em uma crosta de arrogância e presunção que deixa o coração vazio.




domingo, 10 de abril de 2011

PELA TEVÊ


Dade Amorim
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O debate começou tão morno
que não conseguia prestar atenção
nem mesmo no que você dizia.
E enquanto você ouvia os comentários a sua volta
talvez estivéssemos pensando na mesma pessoa
ainda que há décadas não nos víssemos
e seu percurso tenha sido tão diverso.
Imagino que estivesse pensando nele
tanto quanto eu pensava vendo você
trinta anos mais velho
os antigos cabelos louros agora acinzentados
e uma barba que eu não conhecia.
Outras décadas vão passar
talvez o que resta de nossas vidas
sem que esse momento se apague em minha memória
você no telão e eu
no lugar nenhum de quem assiste.
Talvez aconteça diferente, não sei,
mas sempre vou preferir daquele jeito
antes de ele nos deixar.



Obs: Imagem enviada pela autora.