domingo, 26 de junho de 2011

RUSTICIDADE ADOCICADA

Malu Nogueira


Pai Véi era o único que tinha relógio. Bonito, de algibeira, ele não deixava ninguém tocar. Assim, sem ser questionado, acordava em torno de uma da manhã, dizendo a todos que o dia já ia raiar e que o engenho precisava moer a cana, para fazer rapadura, mel, alfenim e batida.

A casa grande, com alpendre, ladeada por duas majestosas árvores, parecia que nunca fechava as portas, tal o entra e sai de gente.

Os trabalhadores, sem noção do tempo, levantavam-se, muitos ainda cansados do trabalho estafante que praticamente tinham acabado de encerrar, iam para o batente. Os olhos queimando de sono, mas o velho tinha dito que o dia estava raiando, então eles iam ao trabalho, se bem, que estranhassem ver o fifo aceso. Se o dia estava raiando, como explicar o fifo queimando o querosene e clareando o engenho para que eles colocassem os bois para moer cana? Negócio estranho esse, que um dia eles iam entender.

Zé Preto ficou a matutar: A cana escolhida tinha que ser fita, branca e preta, canibatora, ou piojota cortada pelas 4 horas da manhã, lá no sítio Antonico, do outro lado do Riacho dos Poços.Muitas vezes, achava que aquela hora não estava. Pelo seu relógio mental devia ser meia noite.

Os carros de bois transportavam a cana para o engenho.Zé Preto ficava a ouvir o chiado gemedor do atrito do eixo com o cocão num nhem nhem sem fim, quando os burros não faziam esse trajeto. Um dia, Pai Véi vai explicar essa matemática das horas tão compridas.

Os bois, Calunga e Mimoso puxavam o engenho presos à almanjarra pela guia (de corda), entrelaçando-os entre si na ligação das cangas, que os orienta para que circulem na direção certa.

Tem três moendas: a cana moída escorre em forma de liquido, o caldo cai no cocho e é levado para um grande tacho, que está sobre o fogo. São três grandes tachos: o primeiro recebe o caldo da cana, quando é colocada a água de cinza e a cal, para a limpeza do produto; o segundo recebe garapa limpa, o terceiro recebe o mel purificado e desidratado. Quando já está no ponto de rapadura vai para o tacho de cobre. Os outros são de zinco.

Para transportar o conteúdo de um tacho para outro, usa-se a passadeira, que é uma cuia de cabaça presa numa vara, de no mínimo três metros de comprimento.

No tacho de cobre, o mel fica borbulhando. Quando evaporar toda a água, as bolhas ficarem grossas e amarelas, em ponto de mel, é hora de jogá-lo na gamela.

Uma grande pá de madeira é usada para mexer o mel e dar o ponto de rapadura, que será colocada nas formas, constituídas de nove cavidades. A rapadura perfeita, sem artifícios ou acréscimos extras, torna-se a principal sobremesa dos sertanejos. A substituta da carne no prato que só tem feijão e farinha.

A rapadura, depois de batida, é encaixada nas formas molhadas e com as palhetas ela é cortada, ganhando a forma de característica. É a têmpera de rapadura, a porção que não pode passar do ponto, para não virar farofa. É um trabalho artesanal, feito com dedicação e muito cuidado, para evitar acidentes.

No controle de cada espaço do engenho têm-se:

O mestre, com a função mais importante, que é dá o ponto para batida, mel e radura;

O foguista cuida da fornalha, que não pode colocar muito fogo, segundo a orientação do mestre. Ele utiliza o bagaço de cana e madeira.

O tangerino que conduz os bois nos círculos, para que o engenho seja movimentado.

O bagaceiro retira o bagaço de cana e espalha-o para secar, para ser usado pelo foguista.

O meseiro, pessoa encarregada de colocar a cana para ser moída, utiliza uma mesa para colocar a cana que vai para a moenda.

O traçador, quando a cana chega do baixio, com folhas, as limpa e corta-lhe a bandeira.

Os carreiros conduzem as canas do baixio para o engenho, em carro de bois.

O encaixador que mexe a rapadura e a enforma.

E o cambiteiro transporta a cana do baixio para o engenho em mulas.

No baixio, os homens utilizam o facão rabo de galo, com lâmina grande, que corta mais pelo tamanho com um único impulso. Faz-se, com ele, mais corte de cana que com a foice.

E assim, o engenho, reduto de tantos, torna-se abrigo seguro para Zé Branco, Zé Preto, Chico Macaco, Mané Grama, Zé Bonito, Zé Tolete, e outros mais.

Da chaminé fumarenta do engenho, vista por toda a cidade, quando moía, nos meses da colheita, resta hoje, seu esqueleto. A prova inequívoca de que quando o dono adormece o tempo pára, a casa fica sem telhado, tudo se cala e o repouso dessas lembranças fica na mente dos seus descendentes, na memória dos herdeiros. O castelo encantado, sem seu guardião principal. Somente a recordação deixada nos escombros do velho engenho do alto da Boa Vista.