terça-feira, 17 de agosto de 2010
O MONDEGO FEITO MATERNIDADE
O Mondego Feito Maternidade
Um Conto em Tempo de Meditação
por
J. A. Horta da Silva
Ex-Director do INETI (Coimbra)
Escritor (horta.silva@sapo.pt
Hoje em dia, a maior parte das pessoas nasce em unidades de obstetrícia dos hospitais e em clínicas privadas ou, por desventura, a caminho destes lugares, mas não é invulgar nascer-se durante uma viagem de avião. Há bem mais de meio século, nascia-se em casa às mãos de uma entendida mas, mas eu preferi o Mondego na hora em que minha mãe lavava roupa à beira de um imenso areal feito de areias, seixos, patelas e rebos. Vivia-se no tempo dos fatos por medida e nós estávamos no dia de S. João, em ano de pousio das festas da Rainha Santa. Minha mãe era costureira, mas sem calças nem coletes para confeccionar, dava-se ao trabalho de lavar a roupa no rio e, assim procediam as lavadeiras de profissão que, ociosamente, cinzelavam as pedras de lavar com o sinete da ostentação exposta, coisa própria daqueles que nada tinham que valesse a pena mostrar. Tal como a matéria é omnipotente na ocupação do seu espaço, as mulheres entulhavam o rio e, muito embora estivessem unidas pela pobreza da vida, não deixavam de se digladiar a troco da hegemonia que lhes dava o direito de propriedade sobre uma boa laje poisada num remanso da corrente adequado à lide.
Mas eu é que não andava satisfeito com o corre-corre entre a casa e o Mondego, e muito menos com aquele baloiçar nervoso, irritante e assustador do esfrega-que-esfrega, agravado por uma luminosidade que feria os olhos, incómodos mais do que suficientes para desinquietar a paz intra-uterina. Tinha saudades dos tempos de bonança, durante os quais, na quietude da casa, suavemente iluminada pela luz do dia ou pela luz do candeeiro a petróleo, ouvia a mãe a cantarolar, mais para dentro do que para fora, melodias eivadas de sonhos, enquanto a mão corria a alinhavar os coletes e as calças e, calmo como estava, até nem me importava de escutar o matraquear sincrónico da máquina de costura, embalado na cadência dolente daquele apressado movimento de pé que fazia correr a agulha e os carrinhos de linhas que, juntos, jungiam as costuras. E um dia, afogado como estava em descontentamento e farto de protestar com pontapés, resolvi dizer basta, e encetei o caminho da natividade. Mais tarde, tomei consciência de ter optado por uma má ocasião mas, se não o tivesse feito, também não estava, agora, a escrever sobre a singularidade do facto. Enquanto minha mãe se torcia com dores, um desabrido alvoroço pôs o extenso areal do rio em movimento. «Oh Maria!...Oh Isabel!...Oh Fernanda! Venham depressa que a Palmira está a parir» e se, alguma vez, a união abraçou as mulheres do rio, essa ocasião deu-se na tarde em que eu nasci. A roupa calou-se de gemer entre esfregaços e batedelas, as pedras de lavar foram abandonadas, e meio mundo correu para me ver, deixando o outro meio para trás das costas.
- A Amália que bote as mãos a isto, ela é que sabe. – Dizia alguém com sentido de responsabilidade.
- A Amália não veio hoje, mas está aí a Aninhas que também é mulher destas andanças. – Acrescentava uma outra voz um tanto alarmada, mesmo depois de ter quatro filhos.
- Oh Aninhas! Anda depressa mulher! Dá-me a essas pernas lesma! – Gritava em falsete, o frémito do desalinho.
- Ela não pode correr! Torceu um artelho! – Acrescentou uma quarta voz com comedimento para logo, de seguida, exclamar em altos alaridos. – Traz um desses lançóis que estão a corar! O que estiver mais seco!
- E a tesoura?! – Perguntou a primeira mulher a intervir.
- Eu não tenho...eu não tenho...eu também não... – exclamaram várias vozes numa sequência perfilada cada vez mais estridente.
- À falta de tesoura, serve uma faca – acrescentou alguém num tom amedrontado.
- Quem tem uma faca ou uma navalha? – Gritou o tormento desorientado com a confusão.
- Eu não truxe...eu não tenho...eu também não truxe.
- Porra! Ninguém tem qualquer coisa que corte? – Perguntou a Aninhas ainda a bufar de cansaço, com as mãos agarradas ao tornozelo doente.
- E agora? – Exclamou uma voz sumida por entre o círculo de pernas de mulher.
- Agora?...Agora corta-se com uma pedra – respondeu Aninhas usando um tom autoritário, próprio de pessoa entendida em tais andanças.
- Uma pedra?! – Contrapuseram umas quantas vozes num coro arrepiante que ecoou na margem, onde a preguiçosa corrente agitava umas ramadas de salgueiros que davam largas ao seu narcisismo espelhado nas águas calmas do rio.
- Sim uma pedra! Uma patela afiada...palermas! – Gritou Aninhas irritada – a não ser que uma de vocês queira cortar o cordão à dentada.
- Fô…! – Retorquiu alguém sem comedimento, e muito menos assombro de vergonha.
- Isto é que é uma patela afiada, mulher de um cará...! – Exclamou Aninhas, atirando o rebo para o chão, numa pose crispada que riscou o ar como um lamento angustiante. – Que Deus me ajude! – Foram as suas palavras antes de se baixar e me soltar de minha mãe com a parte mais sã dos seus caninos e pré-molares.
Quando desatei a chorar, estava pendurado pelos pés como se fosse um galináceo acabado de ser negociado na praça da cidade. Ardia-me a perna, face ao empenho da palmada que libertou o acesso do ar aos pulmões, mas o berreiro encheu de alegria a roda de mulheres que olhavam para baixo e seguiam, com curiosidade, os primeiros eventos públicos da minha existência como cidadão. E foi assim, com técnicas do tempo da Idade da Pedra, que eu me tornei gente, entre gente que, de caminho, me deu um banho nas águas do rio como se o Mondego tivesse a dimensão histórica do rio Jordão e eu pudesse vir a ser um crente na redenção dos pecados. O acontecimento soou alto, e os ecos reflectiram-se pelas colinas da cidade, a pontos de o jornal da terra vir falar com a minha mãe, para fazer uma reportagem de primeira página, ainda ela convalescia das hemorragias. Eu não gostei dos flashes e chorei a altos berros mas, passados setenta anos, ainda olho para a minha primeira fotografia que continua a colher a admiração de quantos lêem o recorte da reportagem publicada sob o título “MONDEGO DÁ À LUZ UMA CRIANÇA” e, em subtítulo, “Mãe e Filho Estão Bem”.
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J. A. Horta da Silva