Mario de França Miranda
Hoje ouvimos a afirmação de que vivemos numa sociedade pluralista. Uma sociedade constituída por muitos setores, necessários e irredutíveis entre si, que constituem mundos diferentes com suas linguagens, seus valores e suas práticas. Temos assim o mundo da cultura, da ciência, da política, da economia, da religião, do lazer, da saúde, da cibernética, para citar alguns. Às vezes mesmo, nos sentimos estrangeiros em nosso próprio país por não dominarmos suficientemente o vocabulário de cada um deles. Impressão bastante comum em todos aqueles que já atingiram certa idade e não mais conseguem dominar as engenhocas eletrônicas que fazem a alegria dos próprios netos.
Este quadro deve receber uma correção. Pois, de fato, em nossos dias há um setor que tem a hegemonia na sociedade, invadindo os demais e impondo-lhes sua racionalidade e suas leis. Refiro-me ao setor econômico. Naturalmente este setor sempre existiu na história da humanidade, mas nunca como a força que quase tudo determina em nossos dias. Sua meta é a produtividade, o resultado, a eficácia, o lucro. Para isso emprega uma estratégia de cunho funcional que acaba por subordinar a si os demais setores sociais. Tudo começa então a ser visto na ótica pragmática da economia. Pior ainda, tudo começa a ser usado visando à obtenção de lucros. Objetos de arte, tradições culturais, riquezas naturais, futebol, olimpíadas, carnaval, todos acabam perdendo o que tinham de original, de gratuito, de substantivo, de consistência, para se tornarem meros instrumentos de vantagens financeiras. Esta degeneração já chegou ao mundo da política, das profissões liberais e até da religião, utilizada por alguns para explorar os mais incautos.
Esta funcionalização da vida acaba por atingir até as próprias pessoas. Pois as instituições desta atual sociedade estão dominadas pela necessidade de produzir e ainda têm de enfrentar forte concorrência das demais. Neste momento o ser humano entra na engrenagem apenas como mais uma peça, que vale enquanto funciona e que é descartada quando outro ser humano satisfaz melhor à cadeia de produção, por ser mais jovem ou por dominar melhor as novas tecnologias. De fato, as sucessivas e aceleradas mudanças que hoje experimentamos em todos os campos do saber relativizam bastante, ou mesmo tornam de pouca utilidade, toda a rica experiência acumulada pelas gerações anteriores, que não mais contam para o mercado de trabalho. No fundo, no fundo, a lógica pragmática e utilitarista hoje dominante põe à disposição do homem uma quantidade inédita de bens de consumo, mas com sérios danos feitos à natureza e, sobretudo, com uma crescente diminuição da qualidade de vida.
Naturalmente sabemos que a sociedade atual é muito complexa, depende de muitos fatores e exige a conscientização e a colaboração de todos. Sonhamos com uma sociedade regida pela justiça e pela paz, voltada para a partilha e a compaixão, na qual o ser humano seja respeitado em sua dignidade única. Meta impossível de ser alcançada a menos que o fator econômico se deixe reger pelos valores da vida humana. Os temas da “razão social” e da “sustentabilidade” já indicam alguma mudança. Daí a importância da ética em nossos dias: despojada de todo ranço moralista, ela se apresenta como um fator imprescindível para o bom funcionamento da sociedade, para a convivência humana, para a realização do sonho de felicidade que todos temos. Prova cabal do que afirmamos é a violência urbana como produto natural das escandalosas desigualdades sociais.
A mensagem e a vida de Jesus Cristo visavam ao anúncio e à realização do Reino de Deus, a saber, à construção da sociedade humana querida por Deus, como uma família de irmãos e irmãs, todos filhos e filhas do mesmo Pai. Poderíamos mesmo afirmar que Jesus Cristo veio implantar uma sociedade alternativa a esta que hoje experimentamos e suportamos. Caracterizada pelos valores evangélicos do amor fraterno, da partilha de bens, da compaixão, da justiça. Meta inalcançável nesta vida, mas que constitui o ideal de qualquer cristão que tenha entendido realmente sua fé. Embora limitado e pecador, impotente enquanto se apóia apenas em si mesmo, ele sabe poder contar sempre com a presença atuante do Espírito Santo, por quem o amor de Deus foi derramado em nossos corações (Rm 5,5) para que o levemos aos nossos semelhantes. A história demonstra sobejamente que, sempre que a humanidade se afastou da mensagem cristã, ela se tornou mais desumana, mais violenta e mais insensível deixando atrás de si um saldo vergonhoso de sofrimentos e mortes.