domingo, 6 de novembro de 2011

MENINA DE SION – PARTE I


Maria Inez do Espírito Santo


1956 - Petrópolis
Quando eu e minhas irmãs, devidamente escovadas e lustradas, acompanhadas por nossa mãe, fomos recebidas solenemente, no Parlatório, por Mère Carmélia, a subdiretora do colégio, para uma entrevista preliminar de matrícula, conseguimos surpreender a religiosa por nossa ingenuidade, que ela chamou de inocência e pelo que parabenizou minha mãe. Não sei precisar o teor da conversa que tivemos, nem seu tom, mas ela percebeu que não tínhamos a mais mínima idéia sobre como nascem os bebês e todas essas coisas que, àquela época, eram considerados assuntos muito picantes. Assim, com menos de 8 anos, após essa “prova” fui aprovada com louvor, para ingressar no Colégio Notre Dame de Sion de Petrópolis.

Mesmo sem entender muito bem porquê estava mudando de escola, deixando minha primeira escola onde eu era especialmente querida, achei aquela novidade muito importante. Afinal estávamos indo para a melhor escola feminina da cidade, que fora recomendada pelas religiosas do Colégio Santo Antonio, de Duque de Caxias, que eram tão amigas de meus pais, que chegavam a se hospedar em nossa casa, quando vinham à cidade para os encontros religiosos.

Já se vê por aí que eu tinha uma família bastante tradicional e católica praticante. Não espanta, então, que nós três – as Espírito Santo (este é nosso sobrenome) – passássemos a ser chamadas por Mère Rosalina de “A Santíssima Trindade”, quando ela irradiava a chegada dos pais, na hora da saída, a cada final do dia.

Éramos quase vizinhas do colégio, podendo ir e vir a pé de nossa casa, na rua Buenos Aires, até a rua Benjamin Constant. Por isso, talvez, senti uma intimidade afetuosa com o novo colégio, tão logo superei o mal estar das adaptações e compreendi os novos códigos. Perceber que não ganhar parfait não queria dizer ficar sem café e sim não alcançar a nota máxima, indicativa de perfeição; que jersey era o nome como os agasalhos eram chamados ali e que a palavra não se referia ao material com que eram feitas as roupas de baixo; e que circulação era o direito de sair da aula para ir ao banheiro, sem precisar pedir à professora, autorização automática garantida pela posse daquela madeirinha, que devíamos portar ao andar pelo corredor, foi questão de poucos dias e alguns espantos.

Lembro-me que subindo as rampinhas dos jardins que ladeavam as imagens centrais de Notre Père e Père Marie cumpria um ritual muito especial, ao ir acompanhando o balançar singelo das pétalas das papoulas dos canteiros, que ali valsavam qual borboletas de papel de seda. Hipnotizada pela delicadeza das flores ia sendo tomada por tal encantamento, só comparável ao do prazer de ficar nas pontas dos pés para tocar a campainha da enorme porta de entrada da secretaria. Esta uma conquista bastante simbólica, que só foi se confirmando: a cada ano ia ficando mais fácil alcançar a maçaneta dourada.

Posso ainda ouvir o som grave do alarme, hoje, quando aqui estou, 54 anos depois, hóspede da Casa das ex-alunas de Sion, tentando trazer, das arcas tantas da minha memória multifacetada, composta por alguns flashes fortemente coloridos, tão ressaltantes quantos outros preto e branco ou de tonalidade gris, amarelecidos pela fumaça do tempo, as mais significativas recordações.

Ah, as cores! Elas foram sempre um bonito símbolo do colégio: entrei grenat, fui orange, depois me tornei verde e, quando, na classe de admissão, era bleu lisrè, pus-me a questionar as regras e os hábitos do cotidiano do colégio e foi por aí que acabei pedindo para deixar o Sion. Minha reivindicação causou consternação geral e um mal estar muito grande, já que eu sempre fora uma excelente aluna, muito participante e ativa. O fato é que, já desligada da escola, fui, mesmo assim, a mestre de cerimônias da entrega das medalhas daquele ano, uma honra quase absurda, devida principalmente a meu desembaraço e a minha boa voz, de que a festa não podia abrir mão de uma hora para outra.

Ironias da educação daquele tempo, não menos incoerente do que a atual...
Mas a vida no Sion me trouxe, também, muitos preciosos hábitos: a disciplina para o estudo, a organização pessoal, o interesse por novos conhecimentos, a concentração nos rituais religiosos.

Na capela do colégio, numa determinada Semana Santa, em recolhimento e meditação, tive uma das primeiras experiências de transcendência de minha vida. A luz tremeluzente da lamparina, o cheiro de incenso e a realidade comum ficou muito distante, enquanto parte de minha energia sobrevoou meu corpo e tudo o que de mais havia ali, para se integrar, por um tempo impossível de mensurar, a um todo, que naquela situação podia ser chamado de Deus.

São também das Semanas Santas as lembranças das procissões, à noite, pelos corredores escuros, velas pingando em nossas mãos, a cera quente derretida escorrendo pelos cortes mal unidos dos cones de cartão branco, que carregávamos compenetradas. A excitação de brincar com fogo impedia levar a oração muito a sério, mas era bonito ver a enorme fila luminosa serpenteando pelos largos espaços, descendo escadarias, entre cânticos e orações penitentes.

Num Natal daquele tempo, eu e meus irmãos fomos encarregados de conduzir o Menino Jesus, na missa solene. Admitiram até que meu irmão (um menino!) participasse do grupo. E olhe que meninos naquela época só apareciam por ali para prestigiar as próprias irmãs em dia de festa de encerramento, ou como simples fiéis, nas missas dos domingos. Num outro ano, cantei num coral infantil preparado exclusivamente para a Missa do Galo e fui escolhida para ser a solista que anunciava, triunfante: - Jesus Nasceu! Com que orgulho fui soltando pouco a pouco minha voz, que vinha sendo afinada cuidadosamente, nos ensaios diários, junto ao piano da capela.

O interessante é que essas “participações especiais” aconteciam em plenas férias, quando só estavam no colégio umas pouquíssimas internas, vindas de lugares distantes. Eu nunca consegui entender porquê elas não iam para suas casas, se não havia aulas.