Maria Lioza de Araújo Correia
Analisando-se a trajetória da música brasileira, desde os primórdios de sua manifestação até o tempo atual, verifica-se que ela passou por diversas fases, num processo lento ou acelerado de transformação, de acordo com a realidade social, política e cultural de cada época, fundindo-se no que hoje conhecemos e vivenciamos como música popular brasileira.
Nesse percurso foi-se processando a gestação de uma identidade musical nacional que já despontava desde os finais do século XVII através de traços musicais brasileiros nas modinhas, lundus, no ritmo sincopado e, posteriormente, no século XIX, se expressava nas danças como reisados, cheganças, congos e em outras manifestações folclóricas, ocasionando, no século XX, a transformação da modinha em música popular e o surgimento do maxixe, do samba, dos seresteiros e dos conjuntos de chorões, além de inúmeras danças rurais, em que se vislumbravam características da uma incipiente identidade nacional brasileira, nessas expressões musicais populares, segundo Mário de Andrade.
Assim, com o surgimento do Modernismo que teve sua maior expressão concretizada na Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, surgiram questões relativas à definição de uma identidade brasileira na música, na literatura e nas artes em geral, podendo-se afirmar que o debate sobre as origens da música no Brasil, intensificou-se a partir daquele movimento, através das obras de Mário de Andrade e Renato de Almeida, ao longo das décadas de 20 a 30.
Em relação à música, tomando-se como referência de expressão musical brasileira o samba, cujas origens foram objeto de debates por parte de historiadores, sociólogos, músicos e estudiosos, a tese de Mário de Andrade sobre o assunto, baseava-se na concepção de que “a arte nacional estava feita na “inconsciência do povo”, sendo a arte popular a alma dessa nacionalidade” ... e ainda, “a música popular brasileira é a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte criação de nossa raça até agora”. Entretanto, ele entendia ser necessário acompanhar a evolução dos tempos e modernizar a criação musical sem extirpar suas raízes, fincadas no chão da autêntica brasilidade, na qual não se enquadrava a música urbana, porquanto impregnada de sonoridades e elementos estrangeiros.
Contrárias a essa tese surgiram outras tantas que serviram para ampliar e aprofundar os debates em torno do assunto, sem contudo, levar a uma conclusão pacífica a respeito das origens do samba, que a despeito de todas as polêmicas, terminou consagrado como um dos ícones da música popular brasileira e um dos lídimos representantes da nossa cultura.
A propósito, importa destacar que, na década de 50, em função do panorama político e social favorável às mudanças na sociedade, o rádio como fator de progresso, foi decisivo para a divulgação de gêneros musicais estrangeiros como os boleros mexicanos, os tangos argentinos, o jazz e principalmente as famosas bandas americanas, que ocupavam o espaço da música brasileira e de forma sub-reptícia, porém intencionalmente mercantilista, exerciam sua influência nas massas urbanas, embaladas pelas paradas de sucesso, pelos fã clubes, etc.
Face a essas circunstâncias que se delineavam adversas à divulgação da música brasileira, surgiram movimentos, por parte de folcloristas, músicos e intelectuais, em prol da reabilitação das raízes musicais populares, a exemplo da Revista de Música, criada em 1954, da Antologia da Música Popular Brasileira Popular e do 1º Congresso Nacional do Samba, em 1962, organizado pela Companhia de Defesa do Folclore Brasileiro, cujo objetivo era “preservar as características do samba sem tirar-lhe as perspectivas de modernidade e progresso”.
Foi nesse contexto que a partir de l959, surgiu a, Bossa Nova, “projeto de renovação estética e modernização que, ao mesmo tempo, reivindicava o seu lugar na tradição do samba” e trouxe de volta o debate, tornando-o acirrado, como demonstra Brasílio Itiberê denunciando a devastadora influência da música estrangeira na nossa música, num recado direto aos protagonistas da Bossa Nova: “... ela foi ferida de morte na sua parte orgânica mais preciosa, atingida no cerne, na medula, isto é, no ritmo. Desaparece o ímpeto dinamogênico do sincopado e, privada de sua vivacidade rítmica, a melodia popular se amolentou, tornou-se invertebrada, perdendo caracteres raciais específicos...”.
Na esteira de críticas à Bossa Nova, também Ary Vasconcelos lançou um livro sobre a história da música urbana e sua divisão em quatro fases, indo da primitiva (1889/1927) para a fase de ouro (1927/1946), seguindo-se a fase moderna (1946/1958), até a fase contemporânea (1985 em diante), em cuja divisão demonstra a influência crescente da música estrangeira, fazendo com que “o samba original” fosse chamado de antiquado, na “época moderna” da música brasileira” e atribuindo a perda de raízes à indústria cultural e às influências estrangeiras que “sepultaram a expressão mais pura da alma nacional”.
Em que pese a avassaladora consagração da Bossa Nova, outro historiador de música brasileira, José Ramos Tinhorão, ferrenho crítico da Bossa Nova, defende a tese de que a música brasileira manteve-se autêntica enquanto ligada ao universo folclórico coletivo, isto é, às suas raízes, tendo-se dissociado de sua base social “originária” na medida em que as criações musicais passaram a ser direcionadas a partir dos anos 30 para o rádio e depois para a televisão, nos anos 60, devendo-se essa ruptura ao surgimento e disseminação da Bossa Nova, bem como à sua apropriação pela classe média urbana.
As críticas de José Ramos Tinhorão, focadas no tema da expropriação da música popular pela classe média branca e internacionalizada, não deixam de ser procedentes, vez que, a MPB recebia o patrocínio da indústria fonográfica, mercantilizada aos interesses das gravadoras internacionais. Na verdade a Bossa Nova e posteriormente o Tropicalismo, impulsionados pelo rádio e TV, conseguiram ultrapassar os limites do país, projetando-se no exterior e tornando conhecida a música brasileira para além do Brasil. Esse foi o seu maior mérito, principalmente em relação à Bossa Nova.
Quanto à nova feição que a música brasileira tomou, diversificando-se em outras modalidades, depois da Bossa Nova, é temerário afirmar-se que a Cultura Brasileira enriqueceu com a diversidade musical, porquanto o que prevalece atualmente, é a grande profusão e enorme divulgação de uma música descaracterizada, desqualificada e distante da identidade da autêntica música de raiz brasileira, caracterizando-se, claramente, como contra-cultura.
Fonte de pesquisa: “Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música brasileira”.
Por: Marcos Napolitano – Univ. F. do Paraná e Maria Clara Wasserman – Mestranda em História – UFPR
Obs: Foto enviada pela autora, que está com a pasta amarela, com outros colegas do curso de Pós-graduação da FACCAMP.