Maria Inez do Espírito Santo
Quando eu era criança existia uma brincadeira assim:
- Passe adiante, senão vira elefante!.
E a gente ia passando: informação, tapa, bala, o que quer que fosse...
Fui ver “Linha de Passe” na estréia, há uma semana, e confesso que, desde então, não conseguindo escrever a respeito, fiquei me sentindo meio o elefante: pesada, sem saber onde colocar num mundo tão minimalista, alguma coisa muito grande que senti e não identifiquei na hora, ou a que não soube dar nome imediatamente.
De verdade, eu queria gostar do filme, como gostei de “Central do Brasil”, também do Walter Salles. Fui preparada pra isso. Mas, infelizmente, não foi suficiente querer.
Agora, tentando escrever aqui, lembrei, de repente, do elefante que fui ver no templo indiano Arunachaleswar Shiva, em Tiruvanamalai. Disseram-me que o tal elefante beijava nossa testa, com sua tromba. Mas, o que vi e senti está registrado em meu diário daquela viagem: “o tal elefante, que “beija” a testa é um pobre diabo maltratado, mantido preso pela pata acorrentada, mas triste que aqueles dos circos mambembes do Brasil”. Na ocasião eu nem quis receber o “beijo”, que custa algumas rúpias, é claro, como existe um preço também para a autorização de fotografar o prisioneiro sagrado.
Pois é um elefante assim, que preciso libertar com esta página. Voltemos, pois ao filme e ao meu impasse.
Gostei das interpretações. Sandra Corveloni, não trouxe por acaso de Cannes o prêmio de Melhor Atriz. É boa mesmo! Os rapazes e o menino, que fazem papéis de seus filhos são muito bons também. Houve quem questionasse a qualidade da fotografia. Para mim, que não sou tão exigente com aquilo de que não entendo o suficiente, as imagens me pareceram muito boas.
Mas a questão é que, de emoção, eu entendo, certamente. E o filme não consegue deixar brotar a emoção na gente. Mexe, remexe e não aquece o suficiente para permitir germinar coisa alguma .
Onde o destempero? Penso que a grande falha pode estar no roteiro; e na direção, certamente. O filme dura só 1:50h, mas parece ter 3h de duração, tão desconfortável fica suportar alguma coisa que se arrasta, anuncia que pode chegar o tempo todo e não acontece afinal.
E não pensem que é por lentidão ou por excessiva representação do cotidiano que isso ocorre. Fui ver “Luz Silenciosa”, um filme quase bergmaniano, quase um documentário e não consegui desgrudar os olhos da tela e fui caminhando tão passo-a-passo com as cenas, que, no último momento, foi fácil e enlevante passar para a magia que é oferecida como culminância. Perfeito exemplo de passagem!
A pretensão em “Linha-de-Passe” parece semelhante, em relação aos dois planos: da extrema realidade para a linguagem metafórica das últimas cenas. Só que a gente não acerta o passo com o filme e acaba ficando de fora, sem entrar no simbolismo pretensioso e atropelador dos quadros finais.
Não sei como o título foi escolhido. Mas na tentativa de compreender melhor todo o processo, resolvi pensar no termo Passe.
De origem direta do francês, anteriormente vinda do latim, a palavra pode significar muitas coisas em português, todas elas de alguma forma ligadas à idéia de transposição. O dicionário fala em licença, autorização, permissão e ressalta o sentido a que o título do filme faz alusão: passe no esporte (no caso, o futebol) é o ato de passar a bola ao companheiro da mesma equipe.
Será que Daniela Thomas e Walter Salles pretenderam mostrar esse passe contínuo de responsabilidade que se faz em nossa sociedade com as questões sociais? Pode ser uma possibilidade. Alguma coisa como “a bola rola...”
Mas se foi essa sua intenção, o defeito é que parece que eles conhecem muito pouco dos pobres e da realidade de suas vidas. Ao invés de personalidades, pintam caricaturas, talvez porque seja como eles vêem esse mundo.
Quando assisti “Terra Estrangeira” (dos mesmos diretores) tive uma sensação parecida. Talvez porque aquele tema estivesse ligado a questões menos distantes de suas próprias vidas, eles conseguiram chegar um pouco mais perto, sem exagerar nas tintas, como fizeram agora, por desconhecimento da aquarela ou por certa cerimônia com um material “estranho”. Mesmo assim, ao ver “Terra Estrangeira”, tive a impressão de estar assistindo a um arremedo de “Bonnie and Clyde”. O precioso tema do não-pertencimento estava ali, mas foi borrado por uma série de interferências e influências, que não me permitiram entrar na história, o que me deixou com a sensação empobrecida de mera espectadora. Bem diferente aconteceu com o filme americano, quando me senti arrastada pelas fugas de Warren Beatty e Faye Dunaway, torcendo com tal força pelo amor deles, que quase atravessei a linha divisória entre o Bem o Mal e com a morte dos protagonistas, morreu um pouco, ao final, a minha ilusão de que fosse possível conciliar o inconciliável.