(Conto)
por
J. A. Horta da Silva
(horta.silva@sapo.pt)
Instar à rebeldia do pensamento, quando nos encontramos imersos numa beberragem de ideias, não contribui para a clarificação da lucidez mas, agora, que me tornei omnipresente e omnisciente, posso assumir o lugar do narrador impessoal e ubíquo, que tudo vê e tudo sabe acerca da vida que corre aí em baixo. Não tenho saudades e posso garantir que a tranquilidade que sinto não foi comprada a troco de enxovalho, nem paga com penitências de purgatório. Mantenho-me fiel às minhas motivações, sem o ardor e a lamúria implícita à luta pela sobrevivência. Se há Inferno não estou nele, mas posso admitir que vagueio com a sensação de estar no Paraíso. Não sei se por aqui há melhor, mas afigura-se-me que as almas descartam os defeitos, face à infinita dimensão do espaço. Porém, o espiritismo é balela. Daqui, eu posso ver o mundo, mas não existe médium apto a entender esta linguagem, nem breu capaz de fazer brilhar a luz do halo que não tenho.
O meu primo Joaquim continua a ser a pessoa temperada que sempre foi, cheio de curiosidade e de interrogações, remoendo o dilema da minha morte, e pior ficou quando a mulher confessou que o suicídio era o óbice que impedia um médium de entrar em contacto comigo. Tinha encontrado as razões dos seus malogros como espírita, e isso devolvia-lhe o sossego indispensável à prossecução de actividades ligadas à necromancia. Numa noite destas, apanhei-os quando esperavam a chegada do sono, metidos em vale de lençóis. Alcina tinha-se virado para Quim e perguntado:
– Lembras-te da fotografia que ocupa o centro do último mosaico do álbum do Jorge que Deus tem – disse persignando-se.
– Não! Mas lembro-me do lameiro político e financeiro em que nos encontramos e por este caminho não vamos lá. Não tens dado atenção à bagunça que vai por aí com a política?
– Os homens só sabem enxergar bola, política e cobiçar a mulher alheia! Então, o último mosaico de fotografias não tem um conjunto com o Jó envolto em diferentes “pôres-de-soles”?
– Tem! E depois?
– Ooh! Agora é que me “lixastes” – articulou Alcina dando um salto na cama para se sentar de frente para Quim – tu, que “estivestes” tantas vezes a olhar aquele álbum, não “reparastes” que o Jorge tem, na última foto, o olhar de quem é namorado, ao mesmo tempo, pela vida e pela morte?
– Tens uma grande imaginação! Mas o que é que isso tem a ver com o acidente que o matou?
– Oh Quim! Tu não estás a mangar comigo, pois não!? – Questionou Alcina, à guisa de quem clama pelo apreço daquele homem que nunca a desiludira nos demais deveres.
– Isso é uma interpretação abusiva sobre as possíveis razões da morte do Jorge!
– Cá “pra” mim, essa Aaghie tem muito a ver com o que aconteceu. Ela não deixa de ser a causa dos maus caminhos por onde teu primo se atolou, a pontos de lhe meter na cabeça o gosto pelo abismo. E tu também “andastes” embeiçado ou pensas que não sei! Ficavas com os olhitos sumidos, sempre que se falava na senhora “fonder...fonder” quê?
– Van der Marel.
– Vez! Vez como sabes! Sabes isso e muito mais!
– E se falássemos de outras coisas. Já pensaste na carestia de vida que aí vem com a bancarrota? A maneira de ser dos políticos de hoje faz-me recordar histórias que contavam acerca do fim da Primeira República. Se o negócio da serração não der, onde vamos buscar o sustento?
– Não desvies a conversa. Não é com trampa que se tapa o peso da consciência.
A minha prima tem razão. Não é com bosta de boi que se apaga o descalabro da vida. Do meu poleiro, vejo os políticos perdidos e achados em reuniões e em retiro, com imensos problemas ferrados desde a raiz às franjas da memória e do pensamento, no que se refere ao modo de resolver a situação económico-financeira do país tendo, como pano de fundo, a experiência da Grécia e da Irlanda, o “Manifesto de Economistas Franceses Neo-Keynesianos” aterrorizados com a dívida na Europa, o pensamento de Paul Krugman, prémio Nobel de Economia e cronista do The New York Times, relativo às dívidas de Estados Americanos e Europeus e o “Documento da Troika para Portugal”. As visões contraditórias desta gente, toda ela sabida, deixam os políticos entalados entre a espada e a parede. E quando se está entalado entre o Diabo e o Mar, como dizem o ingleses, mesmo que se saiba nadar, qualquer decisão é óptima até haver outra que lhe roube o lugar; o pior de tudo é que nestas circunstâncias a decisão que se vier a tomar também pode ser péssima ou tão-somente assim-assim. Os portugueses ainda dormem razoavelmente, mas quando acordarem, até os primos Joaquim e Alcina vão deixar de pensar em mim…