domingo, 5 de junho de 2011

A ORDEM ECOLÓGICA DOS ESCRIBAS E FARISEUS

Ivone Gebara *


Há uma abundância incrível de escritos ecológicos das mais variadas procedências. Muitos são leitura obrigatória de grupos da elite intelectual introduzindo mais uma novidade no chamado mundo politicamente correto. O discurso sobre a ecologia está na moda. Se paga caro para desenvolver teses ecológicas, caminhos ecológicos sustentáveis, publicações em papel reciclado, discursos inflamados sobre a urgente salvação do planeta antes que seja tarde demais. É com muito dinheiro que se fundam centros nacionais e internacionais especializados em diferentes campos da ecologia. A novidade chegou até na teologia. Escreve-se sobre eco teologia, eco ético teologia, teologia eco feminista, na tentativa de repensar nossa tradição a partir dos desafios do momento. Queremos saber o que Jesus faria no complexo mundo em que vivemos ou quais orientações tomar para sermos fiéis à sua tradição. Por isso alguns até se perguntam sobre a missão cristã diante do aquecimento global ou em relação à destruição da camada de ozônio, ameaças perigosas para a vida na terra.

Hoje todo o planeta vive situações inéditas em relação às questões climáticas e geológicas com a contínua interferência da ganância humana. Muitas dessas questões tocam a sobrevivência cotidiana e se entrelaçam a muitas outras. Que faremos com a falta de água potável, sobretudo quando as companhias exploradoras de água esgotarem os mananciais naturais ou quando as mudanças climáticas secarem ainda mais os nossos rios? Mas, este “o que faremos” genérico, nos leva a perguntar que grupos serão ou já estão sendo os mais vulneráveis à penúria da água ou à penúria de alimentos ou à penúria de direitos básicos? Que grupos vivem situações de risco maior?

Hoje, com a ascensão social de alguns grupos negros e indígenas e, de maneira particular, com a eleição do presidente Obama como primeiro negro a ocupar um cargo de tão grande importância mundial, muitas questões se colocam. Alguns já celebram o pós-racismo e lembram-se das lutas racistas como coisa de nossos velhos tempos de barbárie. Será que avançamos tanto em civilidade coletiva? Será que de fato resolvemos a convivência inter-racial? O mesmo em relação às mulheres. Muitos pensam que o fato de termos no Brasil uma presidente da república mulher já se resolveu os problemas pleiteados pelo feminismo. Por isso falam de pós-feminismo como se a grande luta pela dignidade das mulheres fosse algo do passado.

Todos nós queremos abraçar as novidades de nosso tempo e algumas vezes nos esquecemos de pensar na realidade da vida da maioria das pessoas. Dizer isso não é de forma alguma negligenciar a gravidade do problema da destruição ecológica, mas é desconfiar de nossos pensamentos e iniciativas que compulsivamente precisam estar em dia com a moda ou inventar coisas como se fossem a última novidade.

Por um lado falamos da necessidade de reciclarmos e por outro produzimos toneladas de coisas que se acumulam nas lixeiras públicas e até nos nossos armários. Refiro-me a nossa sociedade de celulares, computadores, aparelhos de mil e uma utilidades que se colam ao nosso corpo e num breve tempo perecem como uma roupa que já não serve mais. Estamos exigindo de nós mesmos o máximo de desempenho em comunicação ou na produção de facilidades domésticas ou em programas eletrônicos para escritórios. Estamos aperfeiçoando cada dia, a tecnologia dos automóveis e introduzindo milhares de novos carros para nos transportarmos cada vez mais rapidamente nas estradas entulhadas de veículos. Tudo muda rapidamente e o velho se acumula em montanhas de sucata esperando talvez o reaproveitamento.

Não nego a maravilha da tecnologia do século XXI – o acesso às bibliotecas, a filmes do passado, às conversas familiares com quem está longe através dos telefones e outros aparatos, os variados programas eletrônicos que nos trazem os acontecimentos em tempo real... De repente nosso mundo se modificou. Não conseguimos mais estar longe dos que nos são próximos. Sempre estamos perto uns dos outros numa proximidade de voz e de imagem, muito embora nossos corpos reais estejam distantes. Mal aterrissamos de um avião e já todos os celulares estão sendo ativados e estamos anunciando nossa chegada. Não temos tempo a perder. Nos restaurantes comemos e falamos ao telefone. Nos transportes públicos as conversas no celular são cruzadas umas as outras. Até nos banheiros públicos algumas vezes senhoras e cavalheiros usam o celular ao mesmo tempo em que fazem suas necessidades fisiológicas. Todos nós já ouvimos pedaços de conversa aqui e acolá, que se dissipam com os ruídos da cidade grande. Cada um está conectado com seu mundo, preocupado com seu horário, seus negócios e não hesita buscar sempre novas tecnologias para favorecer seu máximo bem estar. É o triunfo da proximidade individualista e da preocupação imediata com a comunicação tornada coisa de absoluta relevância.

Temo estarmos nos parecendo aos escribas e fariseus denunciados no Evangelho de Jesus. Estes eram capazes de grandes discursos, mas incapazes de mover com um só dedo o pesado fardo do semelhante. Ao dizer isso, estou tentando tornar presente os velhos problemas relativos às muitas caras da pobreza ecológica. São os pobres e os miseráveis as primeiras vítimas da falta de condições de água potável, de limpeza pública, de acesso à comunicação de qualidade. E entre esses pobres não há que esquecer em nosso país as mulheres e as populações negras e indígenas mais carentes. Por um lado destruímos suas terras e por outro falamos da urgente necessidade de salvar a terra. Por um lado o assassinato de mulheres cresce e por outro discursamos sobre o respeito a elas. Por um lado afirmamos viver a democracia racial e, no entanto, conhecemos a cor das populações mais pobres. Por um lado dizemos que já vencemos a homofobia e por outro os jornais continuam anunciando a proliferação dos crimes contra homossexuais. Sepulcros caiados somos nós. Mostramos uma cara preocupada com o quadro tétrico descrito por nós mesmos e poucos dentre nós querem fazer algo para que as coisas sejam melhores. Quantos aceitam abrir mão dos muitos automóveis ou do excesso de consumo de água e de energia? Quantos de nós de fato reciclamos coisas ou buscamos controlar através de políticas democráticas os excessos da moderna tecnologia? Quantos de nós nos organizamos para dar um basta à produção de armas? Quantos de nós nos preocupamos de resgatar a história das populações marginalizadas? Ou simplesmente buscamos simplificar nossa forma de viver de uma maneira diferente daquela oferecida pelo moderno mundo consumista?

As novidades mesmo as ecológicas são fonte de lucro para os que mais destroem o planeta. Apenas mudam alguns rumos nos negócios e nos discursos, mas continuam acreditando na superioridade antropológica de uns em relação a outros. E nessa crença reproduzem os mesmos esquemas de injustiça do passado agora maquiados pelas novas tecnologias e pelos novos discursos.

Cada vez mais é preciso acreditar em primeiro lugar nas mudanças possíveis que podemos realizar em nosso entorno, em nossos hábitos diários, no trato das crianças e jovens. Em outros termos, como podemos contribuir para além das palavras da moda para o bem estar do planeta e das populações mais necessitadas através de pequenos gestos capazes de sustentar qualitativamente a vida diária?

A história atual está nos convocando a sair do organizado mundo individualista da tecnologia para um encontro real onde sintamos os cheiros uns dos outros, onde vejamos com nossos próprios olhos a realidade na qual vivemos, onde possamos de fato tocar as mãos uns dos outros. Muita gente está tentando construir novas comunidades de sentido e de sobrevivência. Mas ainda é pouco. Precisamos multiplicá-las nas escolas, universidades, bairros, associações dos mais diferentes tipos. Para além dos objetivos próprios de cada instituição, uma ação comum nos é imposta em vista de nossa própria sobrevivência. E ela começa hoje em minha casa, com meus filhos, com a organização de meu transporte, com a convocação do poder público local para que levemos mais a sério às necessidades do povo. Estamos talvez repetindo um refrão ético com palavras um pouco diferentes do passado, mas o fundo é o mesmo.

O pecado dos escribas e fariseus se reproduz em nós nas mais diferentes formas. Estamos acometidos por uma espécie de preguiça existencial que nos faz crer no incontestável império da tecnologia em detrimento do simples bem estar da população através de outros caminhos. Falar de simplicidade significa para muitos, querer voltar à história de séculos atrás. Mas não é isso. É apenas querer ter esperança na simples convivência humana, é tentar sair dessa ansiedade violenta pela novidade que nos acomete a todos para simplesmente poder gozar do sabor da presença física das pessoas e das coisas que convivem conosco. Um grupo de hip-hop norte-americano chamado The Roots fala que nossa época é a “era da pós-esperança”. Mais um pós que nos é acrescentado e desta vez bastante grave. É justamente esse pessimismo juvenil dos mais pobres que queremos evitar; é essa herança que em parte nós lhes deixamos que precisamos mudar. Para isso convidemo-nos a plantar árvores e cultivar jardins em conjunto, convidemo-nos a partilhar o pão e o vinho sem copos de plástico, aproximemo-nos mais um dos outros para simplesmente partilhar histórias do dia a dia e cantar canções de amor. Deixemos nossa solidária imaginação criadora soltar-se e re-inventar relações.

Talvez, redescobriremos algo do sustentável sabor dos frutos, sentiremos a leveza do ar sem poluição, o irresistível contágio da alegria das pequenas partilhas e a ternura das velhas brincadeiras das crianças.


* Filósofa e teóloga, feminista e escritora
Obs: Texto retirado da Revista Tempo e Presença Digital (abril de 2011)