domingo, 12 de junho de 2011

CONJUNTURA ECLESIAL E SÍNODO PARA UMA NOVA EVANGELIZAÇÃO

Mario de França Miranda


          Sem dúvida vivemos um tempo crítico na história da humanidade e da Igreja com repercussões em nosso país. Não voltaremos a descrevê-lo, pois tal já foi realizado muito bem pelo Padre Joel Amado na Assembléia passada. Apenas gostaríamos de enfatizar, logo de início, que a seriedade da hora atual pede coragem de encarar a realidade, de discernir o que convém à luz da fé cristã, de ousar iniciativas novas. O Documento de Aparecida afirma que todos na Igreja “são chamados a assumir atitude de permanente conversão pastoral, que implica escutar com atenção e discernir ‘o que o Espírito está dizendo às Igrejas’ (Ap 2,29) através dos sinais dos tempos em que Deus se manifesta” (DAp 366). O texto dos Lineamenta para o próximo Sínodo sobre “a nova evangelização para a transmissão da fé cristã” afirma que os novos desafios “obrigam a Igreja a se questionar de modo novo sobre o sentido de suas ações de anúncio e de transmissão da fé” (L 3).

          Realmente vivemos, quer nos agrade ou não, a passagem de uma Igreja de cristandade para uma Igreja de diáspora que nos aproxima de certo modo do cristianismo primitivo. Toda mudança exige não só atenção, clarividência, avaliação e discernimento com relação ao que está em questão, mas também certa lucidez concernente às condições e aos pressupostos exigidos para que ela possa, de fato, se tornar realidade. Portanto, o objetivo desta exposição é apresentar as principais linhas pastorais presentes tanto no corpo dos Lineamenta como também no texto das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil a ser votado nesta Assembléia. E ao apresentar estas orientações fundamentais, procurar apontar algumas opções pastorais para que elas possam ser fecundas em nosso país. Dividiremos esta exposição em seis partes: a nova evangelização, a pessoa de Jesus Cristo, a missão da Igreja, a iniciação à vida cristã, a Igreja como comunidade de comunidades e, finalmente, a Igreja e a realidade sociopolítica.

1. Nova Evangelização

          Expressão fundamental nos Lineamenta “Nova Evangelização” significa não uma reevangelização, mas uma evangelização nova em seu ardor, em seus métodos, em suas expressões, como a caracterizou João Paulo II falando ao Episcopado Latino-americano em 1983. Assim ela não é uma duplicata ou repetição da primeira evangelização, “mas é a coragem de ousar novos caminhos para atender às mudanças de condições dentro das quais a Igreja é chamada a viver hoje o anúncio do Evangelho” (L 5). Mais tarde João Paulo II utilizará o mesmo termo ao se dirigir à Igreja Universal em sua encíclica Redemptoris Missio, conclamando-a “a um renovado empenho missionário” (RMi 2). Este conceito esteve também presente nas Assembléias dos Sínodos Continentais implicando renovação espiritual, discernimento diante das mudanças, assunção de novas responsabilidades (L 5).

          Sensível à realidade de descrença e de indiferença religiosa encontrada na Europa, embora a se difundir por toda parte, Bento XVI lançou em sua visita à República Checa a idéia do “pátio dos gentios” como um espaço onde todos possam entrar e rezar ao único Deus que não conhecem, por estarem insatisfeitos com seus deuses, seus ritos e seus mitos. A mesma imagem volta quando o papa trata da pastoral no mundo da internet, o qual pode se tornar um importante meio para atingir os que não acreditam, os que caíram no desânimo e os que cultivam no coração desejos de absoluto e de verdades não caducas (Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais em 24/01/2010). No fundo, Bento XVI está a nos indicar novos caminhos e novos públicos para a evangelização.

          Mudanças de época sempre provocam certa desorientação e perplexidade. Pois os referenciais tradicionais são questionados, sejam mentalidades, sejam valores. A pluralidade de leituras coexistentes pode levar ao relativismo, bem como a uma reação contrária no fundamentalismo. Além disso, o individualismo cultural, a pressão da produtividade econômica, o consumismo crescente e o sucesso pessoal, com suas conseqüências nefastas são experimentados por todos habitantes do planeta. Porém, em nosso país, a nova evangelização apresenta ainda destinatários próprios.

          De fato, nosso povo conserva uma religiosidade básica, já diminuída ou simplesmente desaparecida em países do Primeiro Mundo. Entretanto, observada mais de perto, esta religiosidade não significa sem mais que estejam evangelizados. Encontramos em alguns um catolicismo superficial, limitado a práticas religiosas de cunho emocional, voltado para a obtenção de favores, ou ainda fechado em si mesmo, sem se importar com o próximo. Naturalmente a situação socioeconômica de muitos brasileiros, a insuficiência do sistema de saúde, a crescente violência explicam de certo modo esta religiosidade. Mas sabemos também que os católicos não praticantes podem ser presas fáceis para outras confissões religiosas, ou mesmo para a descrença. Poderíamos ainda indicar outras lacunas, muito nossas, a serem sanadas pela nova evangelização como a dimensão mística ou experiencial da fé, o imperativo missionário inerente à vocação cristã, a ausência de uma vivência realmente comunitária na Igreja, certa apatia com relação ao compromisso por uma melhor sociedade. Mas estes temas voltarão mais adiante.

2. A pessoa de Jesus Cristo e o Reino de Deus

          O encontro pessoal com Jesus Cristo foi frequentemente enfatizado por João Paulo II em seu pontificado, repercutindo nas Assembléias Episcopais Latino-americanas de Puebla, de Santo Domingo e de Aparecida. A afirmação de Bento XVI já é bem conhecida: “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas através do encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, um rumo decisivo” (DCE 1). Esta verdade implica que vejamos os Evangelhos não apenas como fonte de conhecimento sobre Jesus Cristo e sua mensagem, mas como a Palavra de Deus que nos interpela, desinstala, e questiona, urgindo uma resposta de nossa parte. Esta Palavra é um convite a nos entregarmos e a nos comprometermos com Jesus Cristo, realizando então uma experiência salvífica.

          Sendo assim, esta experiência salvífica constitui a finalidade do anúncio salvífico (querigma) (DAp 289) e aponta para a dimensão mística da fé, um dado da tradição eclesial, infelizmente esquecido (DAp 290). De fato, a transmissão da fé de uma geração para outra não consiste em comunicar um pacote de verdades ou de normas, mas de passar adiante uma experiência significativa, plenificante, salvífica, feita com Jesus Cristo. Daí a importância do testemunho existencial de quem evangeliza. Daí também a importância do contato com a pessoa de Jesus Cristo através dos relatos neotestamentários e da oração freqüente. Quando esta experiência inicial se encontra ausente, nosso zelo por formulações doutrinais corretas, nossas recomendações para práticas religiosas, nossos apelos a maiores compromissos pelo Reino, numa palavra, nossas pastorais não conseguem alcançar o fruto desejado. E aqui nasce a pergunta: em nossa vida de fé e em nossa atividade pastoral ocupa esta familiaridade com Jesus Cristo o lugar que lhe compete? Ou enquadramos de tal modo a fé cristã em categorias racionais ou jurídicas, em práticas e instituições, embora em si necessárias, que leva muitos a buscarem em religiões orientais a mística que temos sobejamente na nossa? Não se concentra aqui todo o impulso para uma autêntica iniciação cristã, como desejam os recentes documentos do magistério?

          Entretanto para não sucumbirmos a um relacionamento com Jesus Cristo de cunho intimista, interesseiro, sentimental, não podemos separar a pessoa do Mestre de Nazaré de sua missão: proclamar e fazer acontecer o Reino de Deus na história humana. Em suas palavras e em suas ações transparece o amor do Pai por todos, convidando a todos a ter com seus semelhantes a mesma atitude de Deus. Assim mostrava que só no amor fraterno, na atenção e no cuidado com o outro, sobretudo com o próximo em necessidade, seria possível uma convivência humana na paz e na justiça. Portanto, acolher a pessoa de Jesus Cristo é sem mais acolher a causa do Reino de Deus. De fato, muitos chegam a uma autêntica experiência de Deus no serviço, muitas vezes desapercebido, aos mais pobres e excluídos.

          A pessoa de Jesus é também decisiva para a nossa imagem de Deus. “Ninguém conhece o Pai a não ser o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27). Se levarmos realmente a sério este dado da revelação, então deveríamos haurir nossa representação de Deus das palavras (sobretudo das parábolas) e das ações de Jesus. Pois a história do cristianismo nos demonstra que deformações deturparam a autêntica face de Deus revelada em Jesus Cristo e que ainda hoje provocam dificuldades em muitos cristãos e não cristãos (GS 19). Deus não é a divindade distante dos deístas, nem ameaçadora dos jansenistas, nem só presente no sofrimento ou tapa-buraco nas necessidades. Deus é amor, é misericórdia, é compassivo e bom, apaixonado pelo ser humano a ponto de sacrificar o seu próprio Filho para que tivéssemos a vida (1 Jo 4,9s). Acreditamos realmente no Deus de Jesus Cristo? Confiamos nele em nossa miséria sem buscar garantias humanas que dele nos protejam? Nossas pastorais refletem este Deus amor e misericórdia?

3. A missão da Igreja

          Toda a razão de ser da Igreja é levar, ao longo da história, a salvação de Jesus Cristo para toda a humanidade. Sua razão de ser está voltada para a sociedade a ser evangelizada, como nos recorda Paulo VI, citado nos Lineamenta (L 2): “Evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar” (EN 13). Daí ser a nova evangelização a missão fundamental da Igreja (L 10). E como todos os batizados constituem a comunidade eclesial, todos eles, por serem católicos, devem também ser missionários. Razões históricas, que não nos cabe aqui discutir, limitaram ao clero a atividade pastoral, levando o laicato a uma passividade que perdura até nossos dias, e que, felizmente, começa a ser superada.

          Se toda a Igreja é missionária não deve nos admirar que as mudanças socioculturais ocorridas na sociedade repercutam também na ação pastoral da Igreja. Novos desafios, novas situações, novas oportunidades pedem novas iniciativas evangelizadoras, como percebeu muito bem Bento XVI com a sua idéia do “pátio dos gentios”. Nova evangelização significa assim uma resposta adequada às necessidades dos nossos contemporâneos, à cultura atual, aos novos cenários (L 23). Os Lineamenta os caracterizam como cenários sociais, culturais, econômicos, políticos, religiosos e os expõe concretamente (L 6). Primeiramente descreve o cenário da cultura e aponta o fenômeno da secularização, presente especialmente no mundo ocidental, que denota uma vida humana e social sem qualquer referência a uma realidade transcendente. Assinala também a presença do individualismo hedonista e consumista, o surgimento de um sagrado ambíguo, o fundamentalismo e o emprego da violência em nome de Deus. Num segundo cenário de cunho social são apontados o fenômeno migratório, a relativização dos valores e das tradições, a globalização crescente com suas vantagens e desvantagens.

          O cenário seguinte descreve o progresso enorme dos meios de comunicação social, que tão fortemente influenciam nossos contemporâneos e que apresentam aspectos positivos e negativos, que são devidamente descritos. O cenário econômico assinala a crise atual e a necessidade de regulamentar o mercado mundial, bem como a ausência de uma sensibilidade maior para com os países mais pobres. O quinto cenário é o da ciência e da tecnologia que tantos benefícios tem trazido à humanidade, mas que pode se arvorar em nova religião com o monopólio da verdade, do sentido da vida e da ética. O último cenário é o da política que apresenta uma situação inédita, rica de potencialidades e de tentações de domínio, com o fim do bilateralismo até então vigente. Estes novos desafios “questionam práticas consolidadas, enfraquecem percursos habituais e já padronizados” (L 3), mas também pedem mais profundamente uma nova configuração eclesial (L 9). Deste modo, “o problema da falta de fecundidade da evangelização hodierna é um problema eclesiológico, que diz respeito à capacidade de a Igreja se configurar, ou não, como uma comunidade real, como uma verdadeira fraternidade, como um corpo e não como uma máquina ou uma empresa” (L 2).

          O mesmo problema já havia sido percebido pelos bispos em Aparecida quando urgiam o abandono de “estruturas ultrapassadas que já não favoreçam a transmissão da fé” (DAp 365) ou quando afirmavam que uma renovação eclesial “implica reformas espirituais, pastorais e também institucionais” (DAp 367). Temos que reconhecer ainda que uma determinada configuração eclesial inevitavelmente condiciona a mentalidade e o comportamento do católico. Se no passado só a hierarquia tinha voz ativa e o comando das iniciativas, naturalmente o laicato se comportava como uma massa silenciosa, obediente e passiva. Portanto, não conseguiremos incutir no laicato uma consciência missionária se não oferecermos novas estruturas de comunhão e de participação.

          Em nossos dias “o processo de evangelização se transforma num processo de discernimento”, para ouvir o Espírito, para captar os sinais dos tempos, que implica “um momento de escuta, de compreensão, de interpretação” (L 3). As Igrejas Locais devem ter claros os objetivos, os meios, as modalidades para a realização efetiva da nova evangelização, bem como os desafios de seu respectivo contexto sociocultural (L 4). E igualmente um discernimento crítico para com os estilos de vida, as mentalidades dominantes, as linguagens comuns, os valores presentes na atual sociedade (L 7).

          Além disso, numa época caracterizada pela inflação de discursos e pelo conseqüente ceticismo com relação a soluções ideais, numa época que entende pouco das formulações religiosas do passado, numa época em que as instituições estão em crise, se torna fundamental o testemunho de vida. Nas palavras de Paulo VI: “O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas” (EN 41). Assim o exemplo de uma vida coerente com a mensagem evangélica valoriza e dá credibilidade à Igreja. Pois se trata de alguém que vive a aventura da existência conservando a paz, a esperança e mesmo a alegria em meio às dificuldades e aos sofrimentos próprios da condição humana. E muitas vezes este testemunho acontece em espaços da sociedade onde jamais pisou um clérigo!

          Importante também é respeitar as pessoas em sua caminhada histórica. Como Jesus no encontro com a samaritana, saber partir da situação de cada um e ir, com paciência e compreensão, levando-lhe a mensagem evangélica sem exigir dele o que, no momento, não pode nem entender nem praticar. Reconhecemos ser um sério desafio esta pastoral personalizada pela escassez de evangelizadores devidamente competentes para tal. Mas o texto de Aparecida é claro: o encontro pessoal com Jesus Cristo e com sua missão “é um caminho longo que requer itinerários diversificados, respeitosos dos processos pessoais e dos ritmos comunitários” (DAp 281).

          Uma outra característica da missão em nossos dias é que ela não deve temer se enfrentar com a sociedade onde vivemos. Não podemos “permanecer fechados nos recintos de nossas comunidades e das nossas instituições” (L 7). Para tal é preciso que conheçamos bem o contexto sociocultural que marca a vida de nossos contemporâneos. Só assim estaremos capacitados a empregar uma linguagem que lhes seja significativa e, portanto, salvífica. Para tal é preciso também conhecer, não superficialmente, as verdades da nossa fé, para que saibamos dar razões da nossa esperança (1 Pd 3,15; ver L 16). Felizmente observamos uma busca crescente de formação teológica por parte do laicato, embora, muitas vezes, o mesmo fenômeno não possa ser afirmado entre os que se preparam para o sacerdócio, que deveriam ter um contato maior com a sociedade real onde irão exercer seu ministério (DAp 323), para sentir de perto o desafio da pastoral futura. Este objetivo seria mais facilmente alcançado se participassem, sempre que possível, da vida universitária em alguma instituição católica. Pois se nota em alguns padres mais novos certo medo desta sociedade complexa e secularizada, que pode levá-los a se refugiarem no âmbito do culto e da administração.

4. Iniciação à vivência cristã

          O advento de uma sociedade secularizada que não mais respalda a fé dos católicos, bem como a insuficiência de uma iniciação cristã por parte da família, da escola e mesmo da paróquia, levará a Igreja a insistir num encontro pessoal com Jesus Cristo como fator decisivo para a recepção mais consciente dos sacramentos e da pertença à comunidade eclesial. De fato, pressuposto necessário para que doutrinas e normas sejam devidamente acolhidas e seguidas pelo fiel é que ele já tenha experimentado antes a atração e a força da pessoa e da mensagem de Jesus Cristo. O encontro com a pessoa é mais importante do que o contato com a instituição, embora seja esta última que nos leva a Jesus Cristo.

          A iniciação cristã constitui um processo em vista de um encontro cada vez maior com o Filho de Deus (DAp 289). Este processo se inicia por um encontro inicial com o Mestre de Nazaré através do anúncio salvífico (querigma) e da ação missionária da comunidade, ao qual se segue a resposta correspondente na mudança de vida (conversão) que se desenvolve gradativamente ao longo do discipulado, alimentado pela catequese e pelos sacramentos. Naturalmente todo este processo acontece na comunidade e deveria propiciar uma autêntica experiência eclesial, fortalecida pelo empenho apostólico (missão) do cristão (DAp 280). Naturalmente estes elementos da iniciação cristã, acima descritos, acontecem simultaneamente e sua seqüência não deve ser considerada como sua única modalidade, já que o texto de Aparecida urge que se ofereçam modalidades (no plural) de iniciação cristã (DAp 287).

          Observo que esta temática, no Documento de Aparecida, aparece estreitamente vinculada com a recepção de sacramentos, como, aliás, se dava na época patrística. O texto dos Lineamenta repete o mesmo (L 18), mas já insiste também na evangelização e no anúncio (L 19), o que é muito necessário em nossos dias. Esta iniciação vai dirigida seja aos que se preparam para o batismo, seja para os já batizados, mas afastados, seja mesmo para os não batizados que buscam conhecer a fé cristã. Deste modo poder-se-ia pensar também em modalidades mais informais, menos ligadas visivelmente à instituição eclesial, com maior facilidade de penetração em certas mentalidades e ambientes, abertas ao diálogo com os que pensam diferente, as quais poderiam desfazer ignorâncias e preconceitos e possibilitar assim um encontro significativo com a pessoa de Cristo que os traria gradativamente à Igreja.

          Normalmente a iniciação cristã deverá ter lugar na paróquia onde as pessoas têm maior contato com a Igreja Católica. Mas devido a uma pastoral sacramentalista os católicos vêem na paróquia apenas uma entidade de prestação de serviços, sobretudo de oferta de sacramentos. Consequentemente a instituição paroquial deverá sofrer mudanças para se adequar às necessidades de hoje, como já haviam apontado os bispos em Aparecida (DAp 518). A configuração paroquial a serviço da iniciação da vivência cristã não surgirá dos livros de teologia, mas das experiências concretas realizadas e devidamente avaliadas, e que exigem coragem e ousadia.

5. Igreja Local e comunidades menores

          Entendemos por Igreja Local não somente uma diocese, mas também dioceses de uma região dotada de características socioculturais semelhantes e, portanto, com iguais desafios. Pode ser um regional da CNBB, a própria Igreja no Brasil, ou mesmo a Igreja Latino-americana. Como enfatiza o texto dos Lineamenta: “O anúncio, a transmissão e a experiência viva do Evangelho nela se realiza” (L 15). Hoje a Igreja Local tem grande importância. Pois ela experimenta por primeiro as dificuldades provindas da sociedade, que mesmo afetando a Igreja Universal são captadas e sentidas concretamente no contexto próprio da Igreja Local. Ao respondê-las, a Igreja Local não só procura resolver seu problema particular, mas ainda oferece às demais a sua contribuição para os desafios que atingem também às demais Igrejas. Como afirma o Concílio Vaticano II, a Igreja Local deve oferecer às demais os seus dons em vista de maior plenitude (LG 13). Quanto mais a Igreja Local se insere em seu contexto sociocultural em vista de sua missão evangelizadora, tanto mais ela ajudará seus membros a viver como cristãos naquele contexto. Mas também tanto mais poderá ela enriquecer a Igreja Universal ao contribuir com novas formas de pastoral e de organização, com novas expressões de espiritualidade e de culto, com a “variedade dos cargos e dos ministérios que a compõem” (L 15). Aqui está o sentido último da convocação de um Sínodo Episcopal: ajudar o Santo Padre no difícil e complexo ministério petrino em prol da Igreja Universal, seja através das experiências em curso ou das sugestões enviadas, acolhidas ou não pelo governo central da Igreja.

          Tanto o Documento de Aparecida (DAp 100; 197) como os Lineamenta (L 15) não escondem os problemas enfrentados hoje pela Igreja. Não iremos repeti-los. Mas gostaríamos de enfatizar um deles. Vivemos numa época de intenso individualismo, de forte concorrência entre pessoas, de exagerada pressão social por produtividade e eficiência, de incontrolável aceleração do tempo, características que tornam nossos contemporâneos solitários e carentes de vínculos sociais e afetivos. Além disso, as pessoas hoje estão cansadas de discursos, múltiplos e desencontrados, que prometem felicidade e bem-estar e cujos efeitos não se fazem sentir. É bem conhecido em nossos dias o descrédito generalizado com relação às instituições estabelecidas e a própria Igreja não escapa desta mentalidade, agravada pelos recentes escândalos noticiados pela mídia.

          Daí ganhar o fator “experiência pessoal” uma grande importância em nossos dias. Esta afirmação vale ainda mais para o desafio da nova evangelização. Sem uma autêntica experiência do que é Igreja não conseguiremos motivar leigos e leigas a participar na vida e na missão da Igreja. Como afirma o Documento de Aparecida: “Nossos fiéis procuram comunidades cristãs, onde sejam acolhidos fraternalmente e se sintam valorizados, visíveis e eclesialmente incluídos” (DAp 225b). E na mesma linha continua: “São elas o ambiente propício para escutar a Palavra de Deus, para viver a fraternidade, para animar na oração, para aprofundar processos de formação na fé e para fortalecer o exigente compromisso de ser apóstolos na sociedade de hoje” (DAp 308). Pois comunidade implica necessariamente convívio, vínculos, afetividade, solidariedade, mútuo conhecimento e confiança. Daí a urgência de comunidades menores. Através delas a Igreja poderá “chegar aos afastados, aos indiferentes e aos que alimentam descontentamento ou ressentimentos em relação à Igreja” (DAp 310).

          Os bispos em Aparecida sentiram a necessidade de se reformularem as estruturas paroquiais (DAp 172). Aconselham “a setorização em unidades territoriais menores, com equipes próprias de animação e coordenação que permitam maior proximidade com as pessoas e os grupos que vivem na região” (DAp 372). No fundo é todo um processo de descentralização em marcha, que deve valorizar as experiências em curso e ousar iniciativas significativas a partir de uma primordial “decisão missionária” (DAp 365). Conhecemos já os frutos obtidos através da implantação das Comunidades Eclesiais de Base em muitas dioceses, sensíveis aos respectivos contextos socioculturais e fiéis à Palavra de Deus (DAp 178). Mas existem outras modalidades válidas de pequenas comunidades, grupos de vivência cristã, de oração e de reflexão da Palavra de Deus (DAp 180), ou simplesmente grupos cristãos com desafios comuns que buscam comunitariamente soluções à luz da fé. Aqui devemos acrescentar os movimentos eclesiais e as novas comunidades que possibilitam para muitos um “encontro vital com Jesus Cristo” e uma “ativa participação na vida da Igreja” (DAp 312).

          A paróquia se torna assim “uma rede de comunidades e grupos” (DAp 172), ganhando maior força missionária (DAp 173). Importante é que tais comunidades e movimentos mantenham profundo vínculo e obediência à Igreja Local, não só com relação à fé, mas ainda com relação à orientação pastoral da diocese (DAp 313). Outra condição é que saibam conviver com outros grupos de carismas diferentes, que não devem ser vistos como competidores, mas enriquecedores da unidade eclesial que se realiza na diversidade. “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo” (1Cor 12,4). Nada disso, contudo, verá a luz se o clero carecer de maturidade humana e espiritual para saber trabalhar com o laicato, num espírito de diálogo, de serviço, de abertura, sabendo valorizar carismas alheios e se deixar interpelar pelos outros, sendo assim “discípulos em comunhão” (DAp 324). Tarefa nada fácil em nossos dias!

          É importante também que a afirmação de Aparecida considerando os leigos/as como “verdadeiros sujeitos eclesiais” (DAp 497a), se, por um lado, pede deles uma melhor formação religiosa (DAp 212) e cultural (DAp 492), por outro, destaca que eles devem gozar de maior autonomia e participação em ministérios e responsabilidades, “com ações no campo da evangelização, da vida litúrgica e de outras formas de apostolado” (DAp 211) de tal modo que sejam “parte ativa e criativa na elaboração e execução de projetos pastorais” (DAp 213), participando “do discernimento, da tomada de decisões e, do planejamento e da execução” (DAp 371). Tudo isto lhes compete pelo batismo, sendo, portanto, sujeitos eclesiais, não funcionalmente, mas constitutivamente.

          Hoje a internet nos trouxe a cultura cibernética e ouve-se falar de “comunidades virtuais”. Como avaliá-las em confronto com o que vimos até aqui? Sem dúvida a internet possibilita à proclamação cristã atingir um auditório vastíssimo, mas sem poder impedir a presença de deturpações graves da fé cristã. A ausência de uma comunidade eclesial física priva o internauta de outras mediações da fé como as celebrações comunitárias, as atividades pastorais, assistenciais e sociais, os testemunhos de vida cristã, bem como de tudo o que aprendemos de uma convivência humana. As comunidades virtuais podem se constituir como comunidades demasiadamente particulares e homogêneas por se guiarem pelos interesses próprios de seus membros. Não negamos, entretanto, que a participação numa comunidade virtual possa ser o primeiro passo para uma pertença posterior a uma comunidade real. Há blogs dirigidos por sacerdotes com resultados surpreendentes no campo da oração e da orientação espiritual.

         Ainda uma observação. Afirma o Concílio Vaticano II : “Não se edifica no entanto nenhuma comunidade cristã se ela não tiver por raiz e centro a celebração da Santíssima Eucaristia” (PO 6). Já o Documento de Aparecida faz eco a estas palavras quando assevera que “todas as comunidades e grupos eclesiais darão fruto na medida em que a Eucaristia for o centro de sua vida e a Palavra de Deus o farol de seu caminho” (DAp 180). Entretanto a realidade eclesial hodierna nos oferece numerosas comunidades eclesiais privadas da eucaristia pela escassez de ministros ordenados. Esta questão é realmente séria e deveria, mais uma vez, aparecer nas respostas das Igrejas Locais às perguntas dos Lineamenta.

6. Igreja e realidade sociopolítica

          Sem dúvida alguma, passado o tempo da ditadura militar e das fortes tensões ideológicas, com a melhoria das condições de vida para muitos na sociedade, a Igreja experimentou que outras vozes vieram se juntar a sua na luta pelos mais pobres e marginalizados. Para alguns ela somente perdeu certo destaque na mídia; para outros ela diminuiu seu empenho social pelas críticas a algumas teologias da libertação por parte de Roma e pelas suspeitas que caíram sobre os mais comprometidos na causa dos mais fracos. Talvez por isso o Documento de Aparecida não só afirma serem “os pobres os destinatários privilegiados do Evangelho” (DAp 550), não só renova a opção por eles (DAp 392), mas urge ainda gestos concretos que realmente a comprovem, dedicando-lhes tempo e atenção (DAp 397), proximidade e amizade (DAp 398).

          De fato, os pobres são importantes para manter a Igreja fiel ao espírito do Evangelho. Pois o espírito do mundo a assedia continuamente por uma valorização excessiva de honras, poder, bens materiais, garantias de segurança, que podem afastá-la da sobriedade própria da mensagem cristã. Certa mentalidade individualista e consumista fortemente presente na sociedade não deixa de nos atingir, clero, vida religiosa, laicato, constituindo mesmo um sério problema na formação dos atuais seminaristas.

          Ainda uma observação. O agir político não decorre linearmente da moral, pois deve passar necessariamente pelo que Bento XVI chama de “mediações institucionais da polis” (Caritas in Veritate 7). De fato, o cristão encontra sempre uma sociedade já organizada, com sua história, seus processos constitucionais, suas estruturas sociais, seus partidos políticos, sua linguagem própria. Uma ação política deve ser concreta, apresentar um programa bem determinado, alianças táticas, meios à disposição. Tudo isto pode ser visto diferentemente dado o fato que vivemos numa sociedade pluralista, onde cada um pode ter uma percepção diferente da ação política a ser realizada. O cristão não pode ceder de modo simplório ao “maniqueísmo político”, nem cair na tentação do “evangelismo político” que identifica a fé cristã com alguma opção política concreta (GS 43).

          Deste modo, respeitada a doutrina e a moral da Igreja Católica, certa diversidade neste campo, pode surgir não só no laicato, mas também na hierarquia. Pois inevitavelmente os bispos apresentam uma pluralidade de experiências, de contextos, de formações, de teologias, de preocupações, de leituras da realidade, que naturalmente os levam a avaliações diferentes e, portanto, a atuações diferentes diante de uma situação determinada. Logo pode um bispo emitir sua opinião pessoal, em nome próprio e para seus diocesanos, sobre temas da vida política, como observa a Nota da CNBB por ocasião das últimas eleições (08/10/2010). Enfatizo esta questão, pois julgo que devemos lutar pelo advento de uma mentalidade que respeite mais a diversidade no interior da Igreja, inevitável em nossos dias, por parte dos católicos e das católicas, educados talvez a confundir unidade com uniformidade.

          Termino estes simples comentários aos Lineamenta agradecendo a todos pela atenção e pela paciência com que me ouviram. Muito obrigado.