O Caso da Idosa de Rinchoa (Sintra-Portugal)
por
J. A. Horta da Silva
horta.silva@sapo.pt
O aumento do tempo médio de vida, a baixa natalidade e o estilo egocêntrico dos tempos que perpassam deram origem a sociedades envelhecidas, egoístas, desleixadas e violentas, que se movimentam em redor do culto da pessoa. Neste caldo social, os velhos assemelham-se a fósseis vivos, oriundos de uma época em que o computador era miragem. Face ao novo estilo de vida, a terceira idade tornou-se um peso para a sociedade. Por estas e outras razões, muitos velhos são enterrados duas vezes. Na primeira vez, o séquito fúnebre é discreto, o cemitério toma a forma de um lar e os coveiros são, em geral, parentes próximos. É um enterro sem urna, com sorrisos de empréstimo e frases de ocasião, imagens que o tempo não consegue apagar do subconsciente do morto-vivo; da segunda vez, os velhos são inumados num cemitério, com direito a urna e algumas flores. Não há palavras mas, disseminado por entre os acompanhantes, usa estar presente o sentimento de quem sabe que quem partiu amou e foi amado. No entanto, há velhos que se negam ao primeiro enterro e, com coragem, decidem viver o resto da vida no mausoléu em que se transformou a própria casa.
E por esta circunstância, é frequente a morte de idosos na companhia da solidão. O eco do caso de Augusta Martinho, ocorrido na Rinchoa (Sintra), deve-se ao facto de o corpo ter estado quase nove anos à espera que lhe abrissem a porta para ser sepultado, não obstante os alertas de uma vizinha e os esforços de um primo em sede policial e no tribunal de Sintra. O desembaraço das Finanças no âmbito da cobrança coerciva de impostos, sem verificar que a devedora não recebia a reforma da Segurança Social, não era vista pela vizinhança e que existiam pedidos de autorização de arrombamento da porta a decorrer em instâncias policiais e judiciais, é atrevimento típico de um país do Terceiro Mundo. A Administração Pública portuguesa sempre foi desleixada, primando por aparentar excesso de zelo; todavia, também é de admirar que haja gente capaz de comprar uma casa, em hasta pública, sem se informar acerca do que ia adquirir.
O silêncio é, ocasionalmente, a imagem da estupefacção e, naquela casa de Rinchoa, fez-se um silêncio aberrante por mais de oito anos, por razões transportadas ao limite da capacidade imaginativa do cidadão. Tudo o que se passou é de tal modo insólito e desprestigiante que, para bem de todos nós, será melhor considerarmos que estamos perante uma espécie de sarcasmo do destino, corporizado por um conflito entre dois momentos tão próximos e tão afastados da realidade, como o fecho do círculo da contradição, no qual uma ponta está devotada ao que é, e a outra, ao que deve ser.
Contudo, a Natureza fez justiça, usando as armas que dispõe. Segundo algumas notícias, o corpo de Augusta Martinho terá entrado num processo de mumificação, facto que não deixa de ser uma forma anacrónica de apelo à razão, não só em relação às múltiplas falhas cometidas pelos diversos organismos estatais, mas também em relação à maneira de estar da própria sociedade. A mumificação natural é um processo de fossilização raríssimo. Duvido que, na casa da Rinchoa, existam condições especiais para que o fenómeno se tenha consumado, tendo em atenção os ambientes de jazida das múmias naturais que nos são relatados no âmbito da História e da Antropologia. Todavia, podem existir factores intrínsecos ao corpo mumificado. O caso merece um estudo científico detalhado, tanto mais que os animais domésticos (um cão e dois pássaros) se decompuseram integralmente. Por outro lado, do ponto de vista civilizacional, é indispensável que este insólito acontecimento fique gravado como exemplo. Pessoalmente, não acredito nas boas intenções dos inquéritos judiciais, por muito preocupado que esteja o Procurador-Geral da República. Se houve mumificação, os resultados das verdadeiras causas científicas perdurarão nos anais da ciência. O lixo virá por acréscimo, ao compasso da pachorra da justiça portuguesa.