domingo, 3 de abril de 2011

À ESPERA DO ARCO IRIS


Jacinta Dantas
jacintadantas@bol.com.br


Raios e trovões assustadores fizeram-me acordar. A chuva forte dava sinais de muitos problemas nos próximos dias. A água, antes pura, vem morro abaixo, soterrando casas, obstruindo estradas. Passei o resto da noite em claro. Sabia que teria muito trabalho no dia seguinte, mas não conseguia dormir. Bem cedo, fui trabalhar, e, de fato, o cenário era o que eu imaginava. Enchente, lama, desabrigados, pobreza...Precisava dar tudo de mim. E trabalhar me ajudava a desviar a atenção de outra tragédia.

A cena deprimente não saia do meu pensamento. Sentia o corte na carne e na alma. Como é que aquilo tudo estava acontecendo? Desde quando? Estávamos casados há apenas 03 meses, e, até então, eu nada sabia. Ele, completamente seduzido, não ligava pra mim.

Na minha limitada compreensão humana, não entendia nem aceitava. Toda uma vida desmoronando e, eu, perplexa, atordoada, paralisada. Seria uma crise existencial interferindo no nosso relacionamento conjugal? Não, era mais que isso: era grave demais, feio demais. Senti vergonha e preferi tentar resolver com ele, sem que outras pessoas ficassem sabendo. Tivemos uma longa conversa e, juntos, decidimos que o melhor seria um tratamento. Procuramos uma clínica especializada, marcamos a consulta, mas na hora marcada, só eu apareci. Não o localizei em canto algum. Como o programa de tratamento era extensivo à família, e, naquele momento, eu era o familiar mais afetado, comecei, então, meu processo de cuidado comigo mesma.

Nos 03 anos de namoro, nos preparamos afetiva e economicamente para vivermos sob o mesmo teto. E chegou o momento certo. A cerimônia do nosso casamento se deu num período de muitos acontecimentos. Ele, no último período da faculdade, além da preparação para o casamento, estava, também, às voltas com a redação da monografia, a festa de formatura, e a tão esperada promoção no trabalho. Fiquei feliz e orgulhosa com tantas coisas boas, ao mesmo tempo, acontecendo na vida do homem que escolhi como companheiro e parceiro de vida.

Como um temporal que alaga, parece que seus sonhos, acalentados por muito tempo, resolveram se realizar num rompante, sem deixar tempo para assimilação dos fatos, para aceitar que coisas boas podem acontecer à pessoa.

Numa noite quente de verão, enquanto ele me esperava no altar, caminhei ao seu encontro, ouvindo, palavra por palavra, “Eu sei que vou te amar”. E ao ouvir – por toda a minha vida – estava ao seu lado, de braços dados. Padre, convidados, testemunhas, minha mãe, a música e nós. Cenário perfeito para a felicidade. Estávamos, ali, oficializando o contentamento da união, do encontro, da vontade de se constituir família. E ouvi – “até que a morte os separe...” Nossa viagem de núpcias foi rápida, pois com o novo cargo na empresa, ele não pôde entrar de férias.

Mas, com as águas de março, vejo tudo se acabando: ele completamente apaixonado por ela e eu impotente, sem ação ou reação. Desde aquela noite, a descida foi rápida: a enxurrada arrastou tudo o que encontrava pelo caminho, e nela, vi, de perto, a degradação humana. Continuamos morando sob o mesmo teto por mais 10 meses, mas o casamento, o encantamento e cumplicidade já não mais existiam. Continuava com a aliança recebida na cerimônia, mas não me sentia casada. Mantendo as aparências, lutei, desesperadamente, para livrá-lo daquela obsessão.

Noites e dias com o aperto no peito, o coração disritmado, a boca seca, o medo e a dor de aceitar o fracasso. Para enfrentar a tempestade que também me afetava e, não me deixar arrastar, além da psicoterapia, passei a tomar antidepressivo e ansiolítico, pois entendi que precisava de um suporte que me ajudasse a enfrentar aquele estado lastimável no qual me meti. Falei com minha mãe e com os amigos mais próximos, na esperança de que eles interviessem. Contei tudo, sem reservas, pois precisava urgentemente de ajuda, para mim e para ele. Não podia vacilar. Precisava encontrar uma saída que fosse menos dolorosa.

Ele se deixava consumir. O homem bonito, com quem me casei, agora estava esquelético, com o olhar evasivo, às vezes dissimulado. No desespero, acreditando ser uma questão de escolha, arrisquei. Ou ela ou eu. E, para o meu desespero, ele escolheu. Em pouco tempo, seu dilúvio particular o arrastou para o fundo, para o vazio e a solidão. Foi perdendo tudo que levara anos para conquistar: saúde, emprego, amigos... foi se perdendo no turbilhão de águas selvagens. Perdeu tudo, e, principalmente, perdeu-se de si mesmo.

E, em mais uma noite insone, madrugada adentro, esperei e ele não chegou . Pela manhã, já com o raiar do dia, chegando ao hospital, tive a confirmação. Overdose. Assim terminou.

Hoje, um sentimento de culpa ainda me atormenta: será que eu seria a diferença? Será que desisti muito cedo? Será que, comigo, ele encontraria forças para não se deixar seduzir? No fundo, penso que ele não suportou as maravilhas de um bom período de chuva, e se deixou seduzir pelo que lhe dava mais prazer: o poder de uma tromba, que se rompe no meio da noite, e não livra ninguém da fúria de suas águas.

E eu, após a tempestade, vivo momentos de intervalos entre o alívio e a tristeza. Sigo em frente, mantendo-me de pé, com o olhar no horizonte, à espera do arco-íris.


Obs: Imagem da autora.