Ivone Gebara *
Uma das frases da tradição cristã que ouço com pouca frequência nos meios religiosos pelos quais transito é: “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma a não ser o amor recíproco”. E constato para minha própria surpresa quão difícil é o amor recíproco e quão difícil é acolhê-lo como uma dívida perene de uns em relação aos outros. No fundo, cada um de nós ama a si mesmo ou tem a ilusão de amar-se. Além disso, pode amar aqueles que lhe são próximos no bem querer, nas convicções e nas idéias. E ainda assim com a contínua ameaça de sermos uns para os outros Caím e Abel. Em um instante o leite pode derramar. A guerra entre pessoas, grupos e países se afirma e, parece ser a saída quase natural para sanar as diferenças entre nós.
Fechamo-nos em nossos grupos, em nossas identidades étnicas e religiosas, em nossas opções políticas e visões do mundo defendendo-nos das ameaças dos diferentes, dos impuros, dos errados, dos idólatras, dos pecadores. Cada um de nós se instala em seu sistema de pureza, de verdade, de justiça acreditando que os outros nada mais são do que marginais, um bando de idiotas e talvez até nossos inimigos. Instalamos em nós e em redor de nós um sistema de coerção e medo, de delações, acusações infundadas e barreiras. Esquecemos que em cada um de nós palpita um coração frágil, carente e indigente que em pouco tempo vai parar de bater. O direito que damos a nós mesmos de constituir nossos grupos e nossas crenças, por mais exóticas que sejam, não nos dá o direito de eliminar aos outros o mesmo direito, a não ser que elas constituam uma real ameaça à vida. Nesse caso caberá às instituições de defesa do país assumir o papel da manutenção social de nossos direitos e de nossa proteção.
De onde nos vem essa espécie de defesa férrea de nossa pele ou de nosso clã ou de nossa ideologia? Porque é difícil admitir que o caminho do outro é também um caminho e um caminho possível? Por que é tão difícil reconhecer o outro e a outra como sendo da mesma humanidade que a nossa e portadores dos mesmos direitos? Por que o outro ou a outra, imprescindíveis à nossa própria existência, podem se transformar quase num piscar de olhos em ameaça?
No fundo, intuo que todos nós para nos afirmarmos como pessoa ou como grupo, temos a necessidade de nos referirmos aos outros para marcar bem nosso espaço, nossa diferença e nossa identidade. Eu não sou o outro ou nós não somos como os outros. Lembro-me da história do fariseu e do publicano narrada em Lucas 18, 10 a 13. O fariseu necessitava marcar sua presença no Templo como diferente do publicano, isto é, como aquele que cumpre a lei à risca e por isso mesmo deveria ser aceito e justificado por Deus. E se alegra com sua identidade própria e com o cumprimento de seu dever cívico e religioso. E mais, imagina que Deus ou o Mistério que nos tece e atravessa, também o confirma em sua identidade e em suas ações. Como muitos de nós, ele sai feliz do Templo, talvez até impondo a todos os outros sua convicção de ser justo diante de Deus e diante se sua própria consciência. Fecha-se numa visão, numa ideologia, numa maneira de compreender sua humanidade e sua religião quase convencido que é possível reduzir toda a diversidade do mundo a si mesmo. E, o mais grave, arma uma guerra contra os outros que são diferentes, não apenas nas crenças, mas na cor da pele, na orientação sexual, na nacionalidade, na idade. Ele corre até o risco de torná-los seus inimigos, aqueles que devem ser combatidos e exterminados da face da terra. É difícil ser o publicano, aquele que reconhece o limite de sua existência e de seus atos.
A origem de todos os fundamentalismos está em nós mesmos e na nossa relação defensiva aos outros, porque nos cremos sempre superiores e melhores. A primeira fundamentalista sou eu, ou seja, é a minha necessidade de afirmar minha pessoa, meus direitos, minha visão do mundo e minha originalidade em relação aos outros. E na ânsia de afirmar meu caminho posso eliminar outros, atropelá-los e ignorá-los acreditando estar fazendo o bem. Esqueço-me com freqüência que se sou meu ponto de partida para viver no mundo os outros, também o são.
Nosso século tem falado muito do respeito à diversidade, mas muitas vezes temos a impressão que quanto mais se fala mais aparecem sinais históricos contrários ao respeito à diversidade. Este comportamento importantíssimo para a convivência humana pode reduzir-se a simples retórica. A quantidade de agressores contra uns e contra outras só aumenta nas folhas dos jornais, nas rádios e nas noticias televisivas. E o que ganham os desrespeitosos a não ser um prazer doentio de haver destruído algo do outro e de sua própria imagem? De haver destruído, ao menos provisoriamente, a diferença que lhes custa e assusta no outro rosto humano a quem não podem suportar? E por que não o suportam? Intuo que não o suportem porque lhes lembram algo da própria humanidade que eles gostariam de esquecer, de apagar, de extirpar. Talvez, lhes lembram a fragilidade quando gostariam de ser apenas fortes, recordam-lhes a injustiça quando gostariam que fôssemos todos justos, lembram-lhes as diversas cores do mundo quando eles só se vêem como azuis ou vermelhos. E finalmente, talvez porque façam nascer em mim a inveja porque não consigo ser o outro, mas apenas meu próprio eu e minha limitada história.
Fundamentalistas somos todos nós se não cuidamos de educar nossa subjetividade à urgência do respeito às diferenças, se não conseguimos educar nossos filhos para a beleza da multiplicidade mesmo que eu não seja a nível individual obrigada a apreciar todas as comidas e todas as bebidas e todas as canções do mundo. A multiplicidade não significa que preciso provar de tudo e apreciar tudo. Mas, ao apreciar algo saber que os outros vão apreciar um algo diferente. Ao pensar algo e me situar de um lado saber que outros estarão em outros lados. Assim, não sou o critério de toda a verdade, de toda normalidade, de toda justiça e de toda a moralidade. Por isso São Paulo dizia que o pecado habita em mim. Isto significa em mim mesmo e não apenas no outro. E afirmar o pecado habitando em mim significa que sou capaz de eliminar a vida do outro, diminuí-la, manchá-la com minhas suspeitas muitas vezes infundadas ou com minhas cruéis agressões, ou com mentiras espalhadas ao vento. Esqueço-me que também sou o outro agredido e o outro agressor. E isto porque somos a imagem uns dos outros. Somos em certo sentido nossos deuses e nossos demônios se digladiando no interior de nós mesmos e na vida social.
Por que somos assim? Buscar as razões em nossas origens não leva a nada. Dizer que foi falha de Deus ou do instante em que o Bing Bang desencadeou a explosão da vida e da vida humana em particular, também não responde a nada. O fato é que somos essa mistura de amor e ódio, de ternura e crueldade, de esperança e desespero, de morte e vida. E isso foi de ontem, é de hoje e provavelmente será de amanhã.
É nesse sentido que, muitos sábios e sábias de muitos tempos e lugares, nos ensinaram as formas as mais diversas de educar nosso eu, nossa relação aos outros para que não nos tornemos déspotas, algozes, juízes implacáveis em relação aos outros e a nós mesmos. A crueldade e a bondade habitam em nós e se misturam em todas as nossas ações como o fermento se mistura à massa e a faz levedar. Mas, se algum ingrediente for demasiado ou excessivo para as medidas da massa estragará toda a massa e a si próprio.
A vida em sociedade exige de nós um renovado aprendizado de convivência. E esta é uma das tarefas das escolas, das universidades, das Igrejas, dos conselhos de moradores, dos movimentos sociais, dos partidos políticos, das famílias e de cada um de nós. Como denunciar a palha no olho do irmão sem esquecer da palha que existe igualmente no meu? Como dar passos para redescobrir o outro como meu outro eu? Como acolher o pecado do outro como meu pecado também? E como alegrar-se com a alegria do outro sem querer diminuí-la ou destruí-la com nossa própria inveja?
Não tenho respostas. Lanço hipótese, faço comentários, intuo coisas. Mas, nada convincente. Por isso, apenas tenho me convidado a cada dia e convidado as pessoas com as quais estou em contato de não tomarmos armas mortais para defender nossas posições, não fabricarmos canhões que podem destruir a população toda, não cedermos à vontade de eliminar o outro com a facilidade de uma bala saída de um revolver. E, nessa linha, tentarmos libertar os valores do Evangelho das estruturas bélicas ofensivas e defensivas das religiões. A “boa nova” poderia ser simplesmente nos redescobrirmos como seres do mesmo húmus, do mesmo sopro vital chamados a viver neste instante único da história do universo. Escolher o caminho do diálogo e do respeito é uma batalha imensa, renovável a cada dia e em cada nova situação. É uma aposta na vida, embora saibamos de antemão que os que abraçam esta causa nem sempre serão vencedores segundo os critérios da competição e do lucro. Mas, não importa, se eu acreditar que as relações humanas podem ser melhores, algo poderá mudar qualitativamente e nossa fé na humanidade não será vã.
Embora, faça escuro, o canto de alguns não deixa a esperança morrer e dá vontade de sair “caminhando e cantando e seguindo a canção”.
* Filósofa e teóloga, feminista e escritora