segunda-feira, 21 de março de 2011

OS RISCOS DE DEFENDER A VIDA


Marcelo Barros(*)


No norte da África, a juventude e a sociedade civil se levantam contra ditadores e exigem mudanças sociais e políticas. Eles se unem a muita gente que, no mundo inteiro, nos dão testemunho de profunda coragem e doação da vida. Certamente muitos filhos escutam de seus pais argumentos para não irem às ruas protestar. É perigoso! Um artigo na internet ressalta a importância da participação das mulheres nas rebeliões cívicas no Egito e na Líbia. É uma verdadeira profecia de fé e confiança no futuro.

Ainda há quem continua dizendo que este mundo não muda nunca. Sempre foi injusto e sempre o será. Entretanto, cada vez é maior o número de pessoas que, em todos os continentes, se mobilizam para transformar a sociedade e tornar a vida mais feliz para todos.

Foi das aldeias indígenas e das culturas mais oprimidas e sofridas da América Latina que surgiu o conceito de viver em plenitude, ou simplesmente bom viver. Nos Andes, os índios quétchua chamam isso de sumak Kwasay; os Aymara falam em Sumak Kamana. Outros povos têm nomes diferentes para indicar o mesmo valor: o objetivo social e político de garantir uma vida feliz para todos. O Equador e a Bolívia integraram a meta indígena do “Bom Viver” em suas Constituições nacionais, elaboradas pela sociedade civil e votada recentemente por todo o povo.

A sociedade capitalista vê sempre a vida como luta, o trabalho como batalha para ganhar o pão e a relação humana como concorrência. Para uma cultura assim, procurar uma vida feliz parece ser utopia irreal. Entretanto, a maioria das tradições espirituais sempre insistiu que o ser humano tem por vocação a felicidade e a plenitude da vida. Jesus Cristo lutou e deu a vida por isso. Conforme o evangelho, ele teria dito: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10).

Na América Latina, muitos irmãos e irmãs deram a vida por este ideal da vida digna e justa para todos. Nesta quinta feira, 24, celebramos o aniversário do martírio de Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, assassinado em meio à missa que celebrava em uma capela de hospital (1980). Conheci e convivi com o padre Inácio Ellacuría, um dos jesuítas assassinados em 1989, na mesma cidade. Dois dias depois do assassinato do arcebispo, durante uma celebração em sua memória, o padre Ellacuria afirmou: “Com Dom Romero, a presença de Deus em El Salvador se tornou mais visível”.

Na época em que o arcebispo Oscar Romero e os jesuítas da Universidade de El Salvador foram assassinados, o país estava em uma guerra civil na qual mais de 50 mil pessoas perderam a vida. Desde os anos 80, a imensa maioria dos assassinatos, cometida por militares, nunca foi investigada nem punida. Nos últimos anos, o país começou a mudar. Os esquadrões da morte foram desbaratados, o principal suspeito do assassinato do arcebispo foi julgado e ninguém mais precisa viver exilado para não morrer. O país elegeu como presidente Maurício Funes, jornalista, ex-guerrilheiro e casado com uma brasileira. A partir do respeito à Constituição e de forma democrática, o país tem integrado o grupo de países latino-americanos que caminham para uma autonomia maior e uma libertação da influência norte-americana. Mesmo sem usar o nome de “bolivarianismo”, os salvadorenhos querem formar com todos os povos do continente uma pátria grande.

Eles tornaram Dom Óscar Romero um herói nacional, homenageado como mártir e como exemplo de humanidade. Uma palavra do arcebispo ressoa ainda hoje como apelo à humanidade: “O grande inspirador da libertação de toda humanidade e de cada pessoa humana é Jesus Cristo. Por sua vida doada e sua ressurreição, ele diz a todos os poderosos da terra: “Vocês não libertam ninguém. Só quem consegue superar o egoísmo e destruir as cadeias que aprisionam o coração humano consegue libertar a si mesmo e aos outros. Se não partir do mais profundo do interior humano, a libertação não é duradoura, nem verdadeira”.


(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.