Betto Santos*
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Queria escrever uma crônica para os que passaram um carnaval triste. Para os que acordaram na quarta-feira cinzenta, sozinhos outra vez, com gosto de semana passada na boca. Para os que, inicialmente tímidos e depois desesperados, viram seu amor-próprio desmoronar à medida da seqüência inevitável de rejeições, de tocos, de não-me-toques, de olhares gélidos lançados pelas colombinas.
Escrever uma crônica dedicada aos pierrots que descobriram seus amores nas mãos do alheio, a boca aberta em outra, fazendo gargarejo com suas lágrimas. A todos os que flagraram a desejada, beijando lividamente um anônimo arlequim, entre centenas de corpos em movimento, sob uma tempestade de confetes e a batucada acelerada de um bloco que, a partir dalí, ganhará um sentido de vertigem insuportável. Uma crônica aos que sofreram as insídias do amor durante o carnaval nublado, e que tudo viram com olhos metafísicos, numa percepção aguda da realidade que o latão de cerveja quente jamais vai mitigar.
Aos bêbados, que choraram confissões às sombras nas paredes. Aos que lamberam a calçada, beijaram o poste, abraçaram o gelo-baiano. Às mulheres, que por aí esqueceram calcinhas e partes irrecuperáveis de si. Aos foliões reflexivos que, no meio do refrão, pararam e se perguntaram: “afinal, o que diabos estou fazendo aqui?” Ao ritimista que atravessou, levou um fora do mestre e foi expulso da bateria no meio do desfile. Aos que se sentem distante de tudo, mesmo no meio de uma muvuca atroz no samba da Praça do Marco Zero. Aos que foram barrados na porta do camarote da cervejaria. Às passistas de corpo esculpido, carregando as flechas de tantos olhares, sabendo que nenhum, nenhum deles, realmente a quer de verdade – pois elas, como todas as mulheres, são outras que nenhum, nenhum deles, jamais conhecerá.
Aos melancólicos senhores e senhoras, com os cotovelos apoiados nas janelas, a quem o carnaval faz lembrar certa pureza esquecida, de bailes da zona norte, de lança-perfumes e marchinhas de uma cidade que não mais existe – de uma vida que se aproxima do fim. Aos persistentes infelizes por vocação que lotaram salas refrigeradas de cinema, livrarias e cafés tentando fingir que o carnaval não existiu.
Uma crônica que faça uma homenagem aos rebaixados na passarela, que preste tributo aos que tiveram o samba derrotado, que dê consolo aos turistas que foram assaltados e esculachados na Veneza Brasileira. Uma crônica que tire um pouco do peso daqueles para quem o término do carnaval é sinônimo de nada mais restar, é caldo de fim de feira às margens do precipício, é tristeza e medo pelo que virá no resto do ano. Porque o ano, depois do carnaval, é resto. É o pouco que sobra.
Acabou, e sempre acaba cedo demais, chega rápido o último dia. Depois, só no ano que vem. Já acabou: as cinzas de quarta-feira caem sobre nossa última dança. Os ambulantes arrastam seus carrinhos, as baterias recolhem suas peças, o eco das notas do frevo derradeiro flutua sobre nós. Sob o grave de um surdo solitário, acaba o carnaval. Já limpam as ruas, os carros já vêm. Calam os subúrbios escuros. Calam as avenidas fechadas. Calamos nós. Acabou. Logo amanhece, e já não seremos mais quem fomos. Como agora, sem carnaval, vamos nos justificar? E até o próximo, o que será de nós?