domingo, 20 de fevereiro de 2011

TERCEIRA LIÇÃO


Maria Inez do Espírito Santo
www.mariainezdoespiritosanto.com


Logo que acordei, desci até o riacho novo. Hoje começava a nossa participação na reorganização da paisagem recém inaugurada, obra surpreendente do último temporal.

Já encontrei o Tião e o seu Zeca selecionando os materiais. Detritos cuidadosamente separados de galhos maiores, alguma coisa ia sendo desmembrada e posta para secar junto ao caule das árvores, os restos menores já formavam um pequeno requeimado ( como eles chamam essa queima dos entulhos), para servir de adubo.

Os troncos menores separados para virar ponte; o grande tronco preservado recebeu a avaliação de que merecia manter-se ladeado pelo pequeno monte de terra e vegetais, que se formou com sua chegada. Ali, decidimos em conjunto, vamos plantar maria-sem-vergonha ou beijo, como é conhecida por alguns... Significativa essa vinculação dos dois nomes para a mesma flor: beijo e sem-vergonha. Pois Maria, sem vergonha de dar beijos, vai brotar ali no alto e se derramar beijoqueira pelo dorso da árvore caída, esbanjando carinho pelas águas novas... Vai ficar bonito, só pode!

Tião, de volta “lá de cima” onde foi buscar um par de luvas grossas que os proteja , durante o trabalho árduo, dos espinheiros, pergunta se ouvimos um tiro. Tiro? - me espanto.

- Um estrondo, que parecia um tiro. Acho que algum transformador estourou. O sítio está sem luz. – depois da explicação, ele me avisa.

Encurto, então, minha excursão e volto depressa para a casa . Procurando, de lá pra cá, acabo por descobrir que não tem nenhum transformador estourado. O que caíram foram as “bananas” do poste de minha casa. Não sei o nome técnico dessas “bananas”, mas elas já me deram muito aborrecimento nesses 21 anos de sítio. Volta e meia fazem desarmar o sistema elétrico e ficamos sem luz.

Lá me vou, contactar a Ampla. Ampla – se o dicionário analógico quiser incluir a palavra, pode gerar as seguintes ligações de significado: aborrecimento, incompetência, desgaste, irritação, desrespeito, indolência, descaso, repetição, deboche, desconsideração, descompromisso, omissão...

O dia se gasta entre telefonemas inúteis, de resultados inexplicavelmente absurdos. E o socorro, é claro, não vem.

Já é detardezinha quando me rendo à evidência: preciso preparar lampiões e velas antes que escureça de vez.

Insegura, porque já se ouvem os trovões e os relâmpagos riscam o céu, ameaçando chuva forte, desgastada e tristonha, começo a organizar o ritual do banho. Sem eletricidade, recorro a duas panelas de água fervente, uma cuia feita de cabaça e espalho pela casa, cuidadosamente, os lumes de vela e querosene que vão me permitir aproveitar a noite, jantar e até ler, talvez, até que o sono chegue.

À medida que as luzezinhas vão sendo acesas, como que por encanto, vou me tranquilizando... A beleza das chamas tremeluzentes me ajuda a amainar o coração e me distraio preparando o cenário com capricho e encanto.

Depois levo ao banheiro os baldes com a água “batizada”, morninha como para o banho de um bebê e me dispo na meia luz, enquanto ainda restam lá fora alguns últimos reflexos do forte sol, que já se deitou atrás da pedra, faz tempo. Pela vidraça a luz natural penetra, misturando-se com a meia-luz artificial e dando um colorido âmbar ao ambiente.

Os primeiros ruidos dos bichinhos da noite chegam até mim, enquanto vagarosamente ensaboo meu corpo e o sinto deliciosamente cansado após um dia de faina intensa.

Quando levanto a cuia cheia d’água e a derramo na cabeça, abre-se diante de mim uma cena antiga, de que sou eu mesma a protagonista, ainda menina, no quintal de uma casa de praia. Baldes cheios de água, esquentada pelo calor do sol, esperaram nossa volta do mar e eu, junto com as outras crianças, tomo agora o “banho de balde”, que refresca, revigora e acima de tudo diverte. Banho bom, que permitia ser incorporada de novo a alma dispersada na algazarra da praia, fugidia talvez no horizonte azul, enquanto ia refrescando a pele bronzeada e adiantando um soninho inevitável, que viria logo depois, quando alimentados, descansássemos numa rede ou numa esteira, até que chegasse a brisa da tarde e o convite a novas brincadeiras.

Enterneço-me momentaneamente com o encontro com o corpo da menina que já fui e reaprendo com ela o prazer das coisas naturais: o deslizar da espuma do sabonete e o escorrer da água no chão são descobertas de formas móveis; o chapinhar dos pés, o ardor dos olhos expandem a sensação das extremidades...

Naquele tempo, saíamos de férias do colégio de elite, da vida na cidade imperial, das obrigações urbanas e íamos viver quase primitivamente, numa casinha onde era preciso tirar a água de um poço e à noite acender os lampiões e aguardar, conversando, a hora de dormir bem cedinho, para levantar felizes e ansiosos, logo que o ar trazia, leve, a brisa primeira da manhã.

Tudo isso ia-me voltando ao mesmo tempo, com o toque da água que caía dolente no corpo, me restituindo uma paz perdida na história mais antiga de minha vida...

Por instantes, pude ser também a jovem que se prepara para o banho purificador do casamento (como no filme “Banhos) e o bebê que recebe o jorro de água junto com o nome, no batismo cristão.

A toalha áspera me secando e ativando o sangue, não é passada, então, com a rapidez costumeira de quem se apressa para o fazer seguinte. Não tenho nenhuma pressa... Estou fora do tempo do relógio.

E é por todo esse encantamento que demoro a ouvir o sino da porteira, insistente, anunciando visitas.

Quase me aborrece ter que ir abrir a porta. Mas os gritos de –Ampla! me jogam de novo no agora.

A mulher que abre a porteira está quase pedindo aos operários que se vão, sem religar a luz. Temo que, estrondosamente brilhante, a claridade artificial leve para outra dimensão as lembranças sensoriais que me fizeram entender que sofremos, inutilmente, por coisas absolutamente desnecessárias.

- Foi um bicho, minha senhora! Veja lá no poste! Uma pombinha rola. Foi ela que bateu no fio e provocou o curto.

E os homens tiram, eufóricos, a pequena ave morta, para me mostrar o culpado do incidente.

Eu a localizo, penalizada, mas agradecida pela lição que me trouxe. Pagou com a vida para me entregar a mensagem: - Não sofra por antecipação. Aproveite cada momento. O essencial, ao final das contas, está sempre a nossa disposição.

Hoje providenciei um enterro para a pequena mensageira. Logo ela vai nascer flor, quando cumprir a etapa de se incorporar definitivamente à terra. E virá a ser, talvez, um jasmim do cabo ou uma dama da noite, essas flores especiais que, na escuridão, perfumam docemente o ar, impregnando nossos sonhos. Sem pressa... com doçura.