Jacinta Dantas
Aos amigos íntimos ele confidenciou que a menina, fazendo-lhe um afago na testa, disse-lhe para ficar tranquilo: a Onda chegaria na tarde daquele setembro...
Muitos anos se passaram desde aquele primeiro encontro. Suzana relembra sua meninice refletida na pureza da lua, colocando-se à disposição de Pedro, com ouvidos atentos e seus dedos ágeis, escutando e transcrevendo sua história de vida em letras datilografadas que mais tarde se transformariam no livro gostoso de ler. Uma história que, sem obedecer a nenhuma ordem do tempo, revelava-se, em forma romanceada, o olhar de um homem sobre a cidade, a missão, as escolhas... a vida. Com o encantamento que lhe era próprio na adolescência, Suzana trazia nos olhos negros o brilho das descobertas nos seus poucos mais de 15 anos, contrastando com a serenidade do olhar azul daquele homem que já vivera mais de 70. Aos poucos ia conhecendo a diversidade de papéis que aquele irmão-avô exercera em tantas vidas vividas e ela estava ali, escutando em primeira mão, suas vivências no trajeto percorrido: diretor de uma grande editora, suas viagens pelo Brasil e pelo exterior, o enfrentamento nos tristes anos de ditadura, o exercício de sua missão... Várias tardes convivendo com um homem que trazia na bagagem muita cultura e nenhuma ostentação de luxo ou riqueza apenas a vida vivida para servir. Sempre que era possível, a “menina” convidava o recém chegado para uma caminhada, no final da tarde, nas areias da Praia da Costa. Tudo era novidade; O velho homem que veio de Minas e escolhera a Vila para usufruir os belos dias da aposentadoria, e a jovem, com vontade de percorrer a trilha, animavam-se na conversa informal (que não seria transcrita para o livro), pois ali na areia, se dava o caminhar da amizade no compasso que demarcava o encontro do passado com o futuro. Pela primeira vez, Suzana, a menina que morava no morro, tinha contato com palavras até então desconhecidas por ela, como empatia, autenticidade e fitoterapia: uma das paixões daquele velho meio bruxo, meio santo, que amava gente e se dedicava à busca da cura para os males do corpo. E, mais que remédios fitoterápicos, Pedro oferecia presença, calor e afago, emprestando-se à pessoa que estava doente, com sua simpatia e simplicidade franciscana. Agora senhora de si, Suzana relembra esses tempos, passeando pelo mesmo lugar – a mesma praia que agora é outra – toda iluminada, outra água, outro céu, outra lua? Por que essa parte vivida intensamente não constara no livro? Muitos anos se passaram e a presença de Pedro continua forte em sua vida. Ele a chamara e ela estava ali, mais uma vez à disposição do encontro, o último, talvez? Muita história acumulada, mas o momento não pedia palavras. Nos passos lentos que davam movimento ao corpo que conseguira transpor nove décadas de vida, Pedro e Suzana entrelaçaram as mãos e sob a cumplicidade do mar olhavam-se, caminhando no compasso do silêncio, sem deixar pegadas. Cada passo era novo e único: as ondas iam e vinham em deliciosas espumas que lhes acariciavam os pés e apagavam o passo dado. Naquele novo encontro, a sempre “menina” fez-lhe companhia em todas as ondas, mantendo-se firme, com os pés fincados no chão. De repente, sem que ela percebesse, seus dedos se desvencilharam e Pedro calmamente foi ao encontro de seu caminho. Suzana, paralisada com a beleza da onda, só percebeu o sorriso. O mesmo sorriso que a conquistara no passado agora lhe dizia que ele precisava partir e partir sozinho no caminho que ora em diante só caberia o seu caminhar. Não havia mais como participar. E, sorrindo, Suzana viu Pedro pela última vez, deixando-se levar nas ondas douradas, no final da tarde no mês de setembro.
Obs: Imagem enviada pela autora (do Fotoblog UOL)