Ivone Gebara *
É bem cedo ainda e o ônibus para o centro de Recife está repleto de passageiros. Nem todos conseguiram entrar e o ônibus já prepara-se para arrancar, acelera uma vez, e mais uma com força ruidosa e nervosa parece começar a mover-se. Finalmente, mais um passageiro consegue entrar apertando-se e segurando-se nos corpos dos outros. Os que continuam no ponto são incensados pela fumaça negra de diesel maculando as camisas brancas e os corpos recém-saídos do chuveiro. Apesar dos pesares é preciso continuar firme, à espera do próximo ônibus. A porta fecha-se com força e esforço. Mas, a porta não vê e, infelizmente o braço do último passageiro fica fora. Ele grita, outros gritam, muitos gritam: "Pare motorista! Pare motorista!". O ônibus pára, abre a porta, e felizmente o braço é salvo apesar de algumas manchas avermelhadas que ficaram como lembrança.
Mas, a agitação dentro do veículo era grande, como se outro incidente estivesse prestes a acontecer. De repente uma voz masculina e jovem se faz ouvir: "Bem feito companheiro! Porque não deixou seu braço em casa! Quem mandou trazer o braço para o ônibus!" risada geral, risada contagiante! Alguns riem da risada dos outros. Até o acidentado ri. Segue-se então o momento narrativo comum. Muitos passageiros tinham uma história trágica para contar, história parecida com o sucedido e esta virava imediatamente motivo de riso. As histórias se misturavam e ficava um pedaço de uma, um pedaço de outra nos ouvidos dos que conseguiam ouvir. Ninguém mais falava do calor, do incômodo da superlotação, das sacudidelas causadas pelos buracos das ruas. O humor trágico tornou o dia mais bonito, a viagem mais agradável, as caras mais distendidas, embora sem apagar a tragicidade da vida. O humor não faz esquecer, apenas abre uma pausa na dor de cada dia. O humor não resolve problemas, apenas nos dá condições subjetivas para encará-los com mais serenidade Este é o humor ou o riso trágico, riso comum que experimentamos no cotidiano de nossa existência. É o riso que ajuda a agüentar os sofrimentos e os medos da vida. É a risada que relativiza as coisas, que ridiculariza os poderosos, os bêbados, os estropiados; risada que nos torna mais simples e até talvez, mais amáveis aos nossos próprios olhos. Rir é o melhor remédio, diz o ditado popular. Rir de si, das outras, dos outros, rir do que construímos, do que pensamos, do que somos e do que pensamos que somos. Rir nos devolve a medida do que é ser simplesmente humano. Haveria outros risos, menos trágicos, menos marcados pela dor que podem ser observados na vida dos grupos humanos? Sim e tantos quantos possamos imaginar! Há o riso da beatitude, o riso da gratuidade, o riso da conquista da terra, o riso da saciedade, o riso da beleza, o riso do prazer, o riso do amor, o riso da criança e tantos outros para expressar esta dimensão própria do ser humano. Há o riso interior, o riso exterior, o riso solitário e o riso conjunto.
Há o riso, o sorriso e a gargalhada. Há o riso forçado, o riso amarelo, o riso irônico, o riso debochado, o riso formal, o riso educado, o riso triste... Haverá um riso religioso? O riso foi um pouco desenvolvido na espiritualidade cristã. As lágrimas e os lamentos foram sempre mais abundantes. Era preciso chorar sobre nossos pecados e alegrar-nos apenas com o futuro celeste. Era preciso entristecer-nos por nossas inúmeras culpas e esperar contritos a magnanimidade divina. O ser humano que chora chama mais atenção do que o que ri. Para o cristianismo as lágrimas são no próprio homem! Deus sempre foi sério. Deus não brinca e, portanto, não se pode brincar com Deus. Deus dá medo ou ao menos provoca temor. Religião é coisa séria muito embora algumas poucas vezes possa provocar alegrias. Mas são alegrias ditas espirituais! Desde o tempo dos Padres da Igreja, o gozo da vida e a sexualidade foram considerados ofensivos à herança cristã. A vida sexual se converte pouco a pouco em tristeza e contaminação pecaminosa. Esta marca se estendeu até os dias de hoje, embora o mundo tenha vivido múltiplas revoluções sexuais.
As oposições dualistas continuam habitando nossos corpos e nossas mentes. Continuamos mais ou menos convencidos, sobretudo os teólogos, de que o riso e o prazer apesar de serem próprios do humano podem ser uma armadilha que o levaria à perdição. No catolicismo, raros foram os santos apresentados sorrindo, raros foram os santos que tiveram uma vida prazerosa considerada positivamente. Ao contrário, a maior parte das hagiografias, assim como na arte sacra é cheia de dores, sofrimentos e sacrifícios. A arte religiosa é trágica. As expressões dos mártires são pintadas ou esculpidas por meio de formas sérias e sofridas ou quanto muito absortas em universos interiores que nos faziam pensar nas realidades para além da terra. Só no além o alívio para este "vale de lágrimas" é possível. Só no além as lágrimas serão absorvidas num estado de beatitude que só os ícones foram capazes de retratar. Os olhares fixos num além desconhecido, feições estáveis que não denunciam nem dor nem prazer. O Cristo crucificado, o Senhor das dores, o Senhor ensangüentado e morto, o Senhor quase sucumbindo ao peso da cruz são as imagens que povoam o mundo de nossas memórias religiosas e, até mesmo da memória protestante popular. A Maria, mãe de Jesus chorando ao pé da cruz, a Maria do coração traspassado por sete espadas, a Maria, Pietá acolhendo o filho morto nos braços. Esta se assemelha às tantas Marias sofridas pelo mundo afora. A religião está crivada de dor e de sofrimento. Estampando a tragicidade do sofrimento humano, parece, como diria Feuerbach, lembrar a necessidade de consolo, de alívio num mundo sem coração. Rir de prazer não era sinal de santidade. Os amantes da vida, os que buscavam vivê-la com alegria eram suspeitos de terem parte com o demônio. O demônio sim, este era festeiro, este gostava de dança, este gostava de vinho e de sexo. Assimilamos o sofrimento a Deus e às coisas de Deus. O sofredor apega-se a Deus. Mas, o "gozador" apega-se a seu próprio gozo ou como diz a tradição popular ao próprio demônio. O demônio parece gostar de rir, de festa, de prazer, de cachaça, de dança. É menos sério do que Deus e por isso está sempre metido nas confusões humanas. O demônio é mais parecido conosco do que Deus. Por isso fomos capazes de desenhar uma imagem feia do diabo, uma mistura de homem e animal. O diabo é nossa imagem. Entretanto, não fomos capazes de imaginar Deus ou quando o fizemos o assimilamos a um velho de barbas e cabelos brancos acima de todos os seres, um velho sem Eros, sem paixão presidindo o mundo em meio a nuvens brancas que às vezes se confundem com suas barbas. E o cristianismo não disse que somos "imagem e semelhança de Deus"? De que Deus? Precisamos ao longo dos séculos negar nossos prazeres e nosso riso para nos aproximarmos dessa imagem divina! Embora se diga que rir é próprio do humano, somos animais tristes. Fomos expulsas do paraíso. E mais do que expulsas, amaldiçoadas. E mais do que amaldiçoadas, condenadas a viver sob o peso de nossas necessidades. Fomos de certa forma cortadas de nossa harmonia primeira e da harmonia conosco mesmas. Por isso, vivemos errantes e dominadas pela vontade de prazer e pela necessidade de sobreviver. Vivemos na corda bamba, um passo em falso e caímos. Fora do paraíso a fragilidade é nossa condição! Por isso podemos rir, mas um riso breve, sóbrio, limitado. Nosso "próprio" riso foi controlado pela ideologia da seriedade e do antiprazer! O Deus Ordenador é sério. Sua lei deve ser cumprida e nela não parece haver lugar para o gozo. Deus não ri. Deus cria. Deus ordena. Deus julga. Deus salva, apesar de descansar no sétimo dia! E seus ministros conhecem sua vontade e sabem como impô-la a seus fiéis. Seus ministros sabem como controlar o riso e o prazer, sabem dosar a medida certa para que as "ovelhas" não saiam do rebanho. Expulsos do paraíso pela tentação consentida, pela fraqueza feminina, pela cumplicidade masculina. Esta é nossa condição! Não se pode mais voltar ao paraíso nesta vida, nesta história. A história não é paraíso, embora o tenhamos na lembrança, embora o tenhamos com sonho impossível a nutrir nossas mínimas possibilidades de felicidade. Somos o que fizeram de nós. E do que nos foi entregue podemos mudar apenas formas, tonalidades, mas a matéria saudosa de paraíso continua a mesma. E a saudade do paraíso pode levar à vida e à morte, pode levar ao individualismo egoísta e ao sentimento do outro como meu eu e meu próximo. A saudade do paraíso pode levar ao ódio disfarçado de amor ou ao amor disfarçado de ódio. Posso ser Hitler ou Bush e posso ser Gandhi ou uma avó da Praça de Maio. Paraíso perdido, amor perdido, objeto perdido de um sem fim! Riso, misturado à mistura da vida! Rir é próprio do humano. Há que rir ou tentar rir, ao menos em pensamento, rir do humano que somos sem saber porque somos o que somos. Jogo de palavras? Jogo da vida num tabuleiro de xadrez? Buscamos no riso formas de salvar nossa dignidade, formas para redefinir nossa identidade humana. É como se diante da violência que nos rodeia, que nos habita e tece, quiséssemos voltar à memória de quem somos: somos amantes, ridentes, sedentas de justiça e igualdade. Mas, somos também assassinas, injustas e mentirosas. E nesse somos tão misturado, tão frágil e passageiro queremos pelo riso resgatar o melhor que existe em nós mesmas. Ao pensar no riso embora não estejamos rindo queremos simplesmente vislumbrar a possibilidade de encontrar de novo nossa alma de encontrar de novo uma razão de ser que nos devolva um "coração de carne". Reaprender a rir com as coisas belas da vida, reaprender o humor presente no cotidiano no dará talvez forças para seguir viagem. Não resolve o problema da violência no trânsito, da falta de emprego, da jovem estuprada, braço ferido pela porta do ônibus, do filho chorando de fome, das decepções políticas, mas alivia, ajuda a respirar e a respirar melhor. Precisamos nos ajudar a aprender a rir para ver se algo novo pode nascer de nosso riso. Rir porque a mesa está farta, rir porque em breve a criança esperada vai nascer, rir porque amanhã é dia de colheita, rir porque Deus ri com a nossa risada.
* Filósofa e teóloga, feminista e escritora
Obs: Texto publicado em ADITAL(www.adital.com.br)