Maria Clara Lucchetti Bingemer,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
O tempo da Igreja "deve ser cada dia mais o de uma nova escuta da Palavra de Deus e de uma nova evangelização", diz o Papa Bento XVI na nova exortação apostólica "Verbum Domini", lançada no Vaticano, no dia 11 de novembro.
A Verbum Domini é fruto da 12ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus, realizada de 5 a 26 de outubro de 2008. Nas páginas do documento, o Papa procura mostrar que, ainda que no século XX tenha havido um renascer de consciência da necessidade da Palavra de Deus em temas como a reforma litúrgica, a catequese e os estudos bíblicos, existe um déficit que deve ser suprido em relação à vida espiritual do povo de Deus. Este tem o direito de ser mais inspirado e nutrido por uma aproximação mais orante e eclesial das Sagradas Escrituras.
Em vários pontos da exortação apostólica, Bento XVI insiste que o cristianismo “não é fruto de uma sabedoria humana ou de uma ideia genial”, nem seus textos resultados da indústria humana, mas decorrem, sim, “de um encontro e de uma aliança com uma Pessoa que dá à existência humana sua orientação e forma decisivas.”
Ao longo de quase 40 páginas das muitas mais que compõem o documento, o Papa destaca a necessidade de apresentar uma hermenêutica de forma “clara, construtiva, situando a ciência bíblica, exegética e teológica no interior e a serviço da fé da Igreja.” É preciso – segundo o Pontífice - uma interpretação das Sagradas Escrituras, que deve ser complementada com uma leitura teológica e científica e que, além disso, exige “o valor da exegese patrística” e convida “os exegetas, teólogos e pastores a um diálogo construtivo para a vida e para a missão da Igreja”.
Na verdade, voltar a pensar o lugar da Escritura na vida da Igreja é uma tarefa sempre pendente, ao mesmo tempo que primordial para todos aqueles que crêem. Pois a Bíblia é para todos que professam a fé cristã fonte da Revelação que lhes suscita a resposta da fé e, por isso mesmo, chamada Palavra de Deus.
Nos primórdios da Revelação ao povo de Israel, os homens e mulheres que captaram e falaram sobre essa revelação identificaram Deus como Palavra. Palavra que rompe o silêncio e fala. Mas se sabe e se declara que fala porque existe um ouvinte, ser humano ou mulher, que ouviu, ouve e fala daquilo que ouviu.
A linguagem humana, na medida em que toma consciência de si mesma, perceberá que fala do que lhe foi dado, fala do que ouviu, do que recebeu, do que acolheu do dom primordial, do mistério indecifrável e inefável que é fonte de tudo e de todos e está na origem sem origem que foi caos e agora é cosmos.
Nó de relações aberto ao mundo, aos outros, a Deus, o ser humano vive tensionado como arco cuja flecha mira o infinito lutando com o peso da gravidade que o conduz ao chão onde partilha com os outros seres criados a condição perecível e o destino mortal. Por seu ouvido aberto, no entanto, penetra continuamente a palavra divina que o constitui ouvinte da Palavra criadora, pronunciada antes de todo nome sobre o caos primitivo. E em suas narinas é soprado o “nefesh” divino que lhe imprime o selo que o faz à imagem e semelhança do Criador.
A Revelação chega ao ser humano como graça que surpreende e convoca a liberdade. Proposta graciosa e gratuita, que pede uma resposta igualmente gratuita por ser fruto da graça que a precede. É, portanto, graça de Deus não só o fato de Ele fazer essa proposta ao ser humano, mas também o fato deste último, em sua limitação e finitude, poder ouvi-la, acolhê-la e a ela responder na fé, carente de evidências e comprovações empíricas. O milagre da escrita torna possível consignar esta escuta e esta resposta em signos legíveis e codificados. Mas por ser não apenas série de signos, letra invertebrada, e sim texto vivo e cheio de carne e seiva, a Palavra assim ouvida, assim falada se torna Escritura: escrita do Mistério maior que é Deus.
O homem e a mulher – seres históricos, sujeitos à caducidade do tempo - são referidos ao ser como mistério, ou seja, são seres sob misteriosa disposição alheia. Por isso, são pacientes mesmo quando agentes; desconhecidos mesmo para si próprios. A salvação os alcança como proposta que vem de Deus, mas que deverá ser experimentada e respondida dentro dos limites humanos: históricos, sociais, culturais.
Sendo algo tão fundamental para a compreensão mesma do que implica ser humano, esta categoria passa a ser uma definição da própria identidade humana: “ouvinte da palavra”. Porém, além de ser um ouvinte da Palavra, o ser humano é um ser criador e emissor de palavra, um ser de linguagem. Não apenas ouvinte da linguagem elaborada e proferida por outro, mas também criador de linguagem que transforma a realidade.
A Bíblia – Verbum Domini, Palavra de Deus – é a Palavra que liberta e dá a vida. Sobre ela, o Papa exorta que se torne não apenas letra morta, mas Palavra de vida, que faz o que diz e faz fazer.
A teóloga é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.
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