domingo, 21 de novembro de 2010

TEOLOGIA E LITERATURA SE ABRAÇAM: A MANIFESTAÇÃO DO SAGRADO NA ARTE LITERÁRIA



PARTE III – TRAÇOS TEOLÓGICOS EM TEXTOS POÉTICOS: LITERATURA E TEOLOGIA EM ADÉLIA PRADO
Ir.Emanuela Mélo de Souza
emasouza@hotmail.com


Adélia Luzia Prado Freitas nasceu em Divinópolis – MG, a 13 de dezembro de 1935. Leva uma vida pacata naquela cidade do interior mineiro. Em 1958, casa-se com José Assunção de Freitas. Dessa união nasceram cinco filhos. Antes do nascimento da última filha (1966), a escritora e o marido iniciam o curso de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis. Em 1973, envia carta e originais de seus novos poemas a Affonso Romano de Sant’Anna, que os submete à apreciação de Carlos Drummond de Andrade. Em 1976, é publicado o seu primeiro livro, Bagagem, cujos originais são enviados à Editora Imago por Drummond, que considera “fenomenais” os poemas de Adélia Prado.

Hoje, a escritora possui um grande número de obras publicadas individualmente e em parceria; produz poesia e prosa, o que dificulta a seleção de um só texto para analisar literariamente.

O escopo de nosso trabalho, como já dissemos, é buscar uma aproximação entre Teologia e Literatura, e entre Literatura e Teologia, por meio de exemplos concretos, de textos de autores variados. É óbvia a diferença entre a obra de Adélia Prado e as composições de Carlos Luiz da Vila. A escritora tem outra origem, outra formação, outras convicções. “Adélia Prado não faz teologia, mas literatura, na arte de embaralhar o divino e o humano”. Sua obra pode ser percebida como portadora de uma reflexão teológica. Luiz Carlos da Vila não pretendeu fazer teologia, mas em sua composição “Por um dia de graça”, com certeza, ele ajudou a teologia a se expressar.

Voltamos a Adélia Prado, citando José Augusto Mourão. Eis como ele percebe o vínculo existente entre a obra da escritora com a religião católica e com a teologia: o terreno a partir do qual Adélia escreve não são as crenças, mas o íntimo, a experiência, a íntima convicção de que Deus é justo, por exemplo, o que escapa a catecismos, a silogismos e à própria teologia. Se há uma “teologia poética” que atravessa a sua obra, essa teologia é feita do casamento da carne e da palavra.

Consideramos que o texto que segue ilustre bem a afirmação do professor José Augusto Mourão, acima citado:


Domus

Com seus olhos estáticos na cumeeira
a casa olha o homem.
A intervalos
lhe estremecem os ouvidos,
de paredes sensíveis,
discernentes:
agora é amor,
agora é injúria,
punhos contra a parede,
pânico.
Comove Deus
a casa que o homem faz para morar,
Deus que também tem olhos
na cumeeira do mundo.
Pede piedade a casa por seu dono
e suas fantasias de felicidade.
Sofre a que parece impassível.
É viva a casa e fala.

As circunstâncias são fator essencial da vida, não um fator secundário. A circunstância é o lugar onde o humano e o transcendente se encontram. Se o transcendente “se encarna”, mora, pousa nas coisas, então a matéria-prima da arte, porque da vida, é o cotidiano na sua circunstância mais prosaica, ou como Adélia mesma define como sendo a única matéria da poesia: “essa vidinha besta”. É o cotidiano que se abre ao divino.

Adélia não se desterrou do mundo, não se refugiou numa clausura, como o fazem as seitas ou a gnose: o real é o seu assento. A justiça é a sua divisa. O Deus a que fala Adélia não é de fato o deus pagão, onipresente nas forças da natureza, mas o Deus onissensível, que comparece na carne do mundo e do nosso horizonte de expectativa. Adélia não atraiçoa a carne para falar de Deus: a sua fidelidade é encarnada, não é feita de princípios e categorias.

Como diz Cecília Canalle, observação e circunstância são dois alicerces da poética de Adélia Prado, seu material, seu tijolo. A circunstância é o cruzamento do momento e do espaço precisos em que a vida acontece. A escritora se depara com a circunstância e a contempla. Essa experiência de estupor gera outra necessidade completamente humana: a busca das razões, ou seja, compreender aquilo que vê. As coisas do cotidiano, o tempo que flui são marcas da eternidade. Adélia reconhece a eternidade dentro de qualquer aparência; sua obra é a expressão de um conjunto enorme de circunstâncias que a convidam a reconhecer o seu destino.

Possivelmente, uma das características mais significativas e definidoras do ser humano está relacionada à contemplação como de busca de sentido. O ser humano contempla e analisa o que viu. O segundo passo, portanto, da contemplação será o “analisar”, o reconhecer, ou seja, conhecer novamente, agora, extraindo do que vê algo que lhe está além.

Nos poemas que seguem, Adélia Prado retoma um de seus mais frequentes temas: a “ausência de poesia” e consequente súplica para que Deus lhe tire essa aridez: não perceber a conexão entre realidade circundante e transcendência.


Paixão

De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra,vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos, não é a bola bonita
caminhando
solta no espaço.


Ausência de poesia

Aquele que me fez me tirou da abastança,
há quarenta dias me oprime do deserto. (...)
Ó Deus de Bilac, Abraão e Jacó,
esta hora cruel não passa?
Me tira desta areia, ó Espírito,
redime estas palavras do seu pó .

Não nos é possível deter-nos em mais escritos de Adélia Prado. Cremos, porém, poder sintetizar o que mais chama a atenção na literatura produzida pela escritora: a dimensão do Transcendente embutida e/ou subentendida em seus textos. Ela trata e retrata as coisas do cotidiano com admiração, entendimento e pureza. Seu olhar único sobre as coisas aparentemente desimportantes do cotidiano revela a perplexidade e encantamento da vida. Sua obra é atemporal, moderna, transformando em lúdico a realidade descrita, fazendo com que os fatos mais corriqueiros ganhem uma densa beleza poética e deixem transparecer a eternidade. O cotidiano é a própria condição da literatura, que na autora, é sempre manifestação religiosa. Adélia Prado não faz teologia, faz literatura. Essa é a sua arte maior: unir o divino e o humano.


Obs: Imagem enviada pela autora.
Abraço – Escultura de Ceschiatti (Museu de Arte da Pampulha-BH
Foto de Claudio Costa com solicitação de autorização concedida.

A PARTE IV será postada no próximo dia 30