domingo, 14 de novembro de 2010

SUBVERSÃO DA LITURGIA


Maria Lioza de Araújo Correia
lioza@uol.com.br


Ontem, 07.11.2010, a Igreja do Brasil celebrou a Festa de todos os Santos, que acontece sempre no primeiro dia de novembro, mas, pela sua importância no calendário litúrgico, a celebração foi transferida para o primeiro domingo deste mês.

À noite do domingo, fui à missa numa paróquia de Recife e, lá chegando, fui surpreendida por um tipo de celebração estapafúrdia, completamente dissociada das diretrizes litúrgicas previstas e recomendadas na Constituição SACROSANCTUM CONCILIUM sobre a sagrada liturgia e consolidadas nas Instruções Gerais do MISSAL ROMANO e Introdução ao LECIONÁRIO, documento e livros oficiais da Igreja Católica Apostólica Romana sobre os ritos litúrgicos das celebrações em geral e da Celebração Eucarística em particular.

Iniciou-se a celebração com a procissão de entrada, acompanhada por um grande número de casais carregando velas e cantando um texto em que se diziam missionários, seguidos por outro grupo de casais, quando começaram a cantar a "Oração da Família", da autoria do Pe. Zezinho, entremeada de palmas e mais palmas, braços levantados, gestos corporais a cada verso das estrofes e do refrão. Era um nunca acabar de palmas propostas pelo presidente da celebração. Após o canto que acompanhou a entrada dos casais e a profusão das palmas, esperei que fosse cantado o canto de abertura da celebração, introduzindo os fiéis na festa litúrgica comemorada naquele domingo de Todos os Santos. Qual nada! Ao chegar no presbitério o presidente começou a celebração cantando juntamente com a assembléia o "Em nome do Pai, em nome do Filho, em nome do Espírito Santo, estamos aqui..." e, achando pouco uma vez, repetiu o canto, novamente invocando e fracionando a Trindade, conforme é afirmado no referido canto, como se a invocação necessitasse ser confirmada para que a Trindade se fizesse presente.

Após a oração inicial, seguiu-se a Liturgia da Palavra, desnecessariamente antecipada pelo comentarista, através da leitura do comentário e da indicação dos textos bíblicos constantes do indefectível folheto dominical, cuja utilização indefinidamente pelas igrejas, veio substituir a escuta da Palavra, pela simples leitura dos textos, automaticamente acompanhada pela assembléia. O Salmo Responsorial, como parte integrante da Liturgia da Palavra e que deve ser sempre cantado, teve cantado apenas o refrão, cuja melodia mal entoada pela salmista, dificultou o entendimento para a assembléia, prejudicando o sentido dialogal que o caracteriza. A aclamação ao evangelho, não teve um único "aleluia". Limitou-se a um canto de refrão e estrofes, que fazia menção à Palavra, mas, sem a autêntica e própria aclamação aleluiática. Depois da procalmação do Evangelho, o padre que presidia iniciou um canto de adoração: "Eu adorarei no oceano do Espírito...". E a Homilia? A Homilia, então, foi um verdadeiro desastre. Considerando-se que a primeira leitura era a do Apocalipse 7,2-4, 9-14; a segunda leitura era a Primeira carta de São João e o Evangelho era segundo Mateus 5,1-12, das bem aventuranças, a homilia limitou-se a mencionar, superficialmente, algo sobre os santos, sem a menor referência às leituras e muito menos ao evangelho. Em vez disso, o padre enveredou por uma história de sua infância sobre uma experiência dele com a pessoa do Frei Damião, concluindo que para ser santo é necessário antes ter os pés no chão, referindo-se ao Frei Damião, e assim, em plena homilia, resolveu cantar um baião da autoria de Luiz Gonzaga que homenageava o citado frade capuchinho, fazendo a assembléia entrar no rítmo do baião, cantando e batendo palmas, como se estivesse na época junina em plena capital do forró e não numa celebração eucarística. Terminado o baião, o padre disse Amém e encerrou a homilia. Em seguida chamou os casais a se postarem em torno do altar para renovar as promessas do casamento com a bênção das alianças e novamente o canto "Oração da Família", cantado e re-cantado, acompanhado de palmas e mais palmas. Registre-se que o próprio padre não se limitava às suas funções de presidente da celebração, mas era quem puxava toda essa cantoria, não sem antes, lá mesmo do altar, propor o tom aos instrumentistas, exercendo, ao mesmo tempo, as funções de cantor e animador, que não são próprias de quem preside.

Terminada a Liturgia da Palavra, os cantores iniciaram um canto de oferendas que nada tinha a ver o rito do Ofertório, seguindo-se a Liturgia Eucarística. Aí é que foi o horror dos horrores. Rezado o prefácio, repentinamente as luzes da igreja foram todas apagadas, ficando acesa, apenas, uma luz arroxeada por trás do crucifixo sobre um altar ao fundo do presbitério. Fez-se um silêncio sepulcral e ecoou em lugar do "SANTO, SANTO, SANTO", o canto: "Eu celebrarei cantando ao Senhor...", que com o "SANTO", não tem absolutamente nada a ver. Seguindo, a Oração Eucarística, que é o centro da celebração, era entremeada com o canto: "Eu quero ser, Jesus amigo, como o barro nas mãos do oleiro...", ficando impedidas as respostas pela assembléia, deturpando-se, assim, a oração núcleo e ápice de toda a celebração eucarística, em absoluta desobediência aos ditames da Sacrosanctum Concilium, nº 22 e §§§, repetidos no Missal Romano, nº 24, onde se lê: "Contudo, o sacerdote deve estar lembrado de que ele é servidor da sagrada Liturgia e de que não lhe é permitido, por conta própria, acrescentar, tirar ou mesmo mudar qualquer coisa na celebração da Missa". Sem contar, ainda que, durante a consagração permaneceu um solo instrumental e depois foi cantado um canto devocional à Eucaristia, práticas completamene abolidas pela reforma litúrgica.

No momento da oração do Pai Nosso, foi cantado um canto, cujo texto de cunho individual, "Pai, meu Pai...", deturpava o sentido comunitário e de unidade da oração que o próprio Jesus ensinou. Então, as luzes se acenderam e no abraço da paz, cantaram: "Eu quero ter um milhão de amigos", da autoria de Roberto Carlos, reduzindo-se o sentido de união de filhos do mesmo Pai e, portanto, de irmãos, a uma união de amigos, empobrecendo o sentido ritual, além de transformar o sinal da paz em um grande auê com mil palmas, abraços, e deslocamentos das pessoas, gerando um certo tumulto, em prejuízo do recolhimento para o rito da fração do pão, o Cordeiro de Deus, cujo canto foi o único que não foi deturpado. Em seguida, a comunhão foi acompanhada de um canto devocional à Eucaristia, sem fazer a mínima referência ao Evangelho, como deve ser o canto de comunhão, a fim de integrar a mesa da Palavra com a mesa da Eucaristia, pela presença de Jesus em ambas. Ainda durante a comunhão surgiu outro canto totalmente sem sentido litúrgico. Quanto ao recomendado silêncio sagrado após a comunhão, este não aconteceu. Não houve clima para silêncio e após um canto final, meloso e dolente, em homenagem a Nossa Senhora, foi dada a bênção e terminou a celebração eucarística que deveria ter sido, também, litúrgica, a fim de que a assembléia pudesse enxergar nos sinais simbólicos-sacramentais a presença de Jesus Cristo, Celebrante, e pudesse participar de forma consciente, da celebração do seu Mistério Pascal, sabendo que essa participação só será plena e frutuosa se nos levar a assumir o compromisso com o reino de Deus e sua justiça.

Ao sair da igreja onde simplesmente assisti, pois não consegui participar conscientemente de tamanha exacerbação e, por que não dizer, da exploração de emoções e sentimentos em nome da fé no que há de mais sagrado na igreja que é a Eucaristia, eu me perguntava, com perplexidade e angústia, o que estão fazendo com a igreja de Jesus Cristo? Onde está a igreja que os apóstolos, os mártires, os santos pais, nos legaram e que o Concílio Vaticano II veio restaurar, em toda a sua autenticidade, simplicidade e verdade? Em meio a tanto aparato, tanta pantomima, tanta excentricidade, tanta exacerbação emocional, durante a celebração eucarística, decididamente, fui levada a concluir que não me enquadro nesse modelo de igreja, emotiva e descomprometida.

Diante do descalabro litúrgico que assisti, uma questão se apresenta e interpela a consciência dos que se dedicam ao estudo da liturgia e à prática litúrgica, levando à constatação de que é urgente e necessário que padres, bispos, religiosos, agentes de pastoral, grupos e movimentos religiosos procurem adquirir e aprimorar a formação litúrgica, através de cursos de formação e aperfeiçoamento, com base nos ensinamentos da SACROSANCTUM CONCILIUM, que é a Constituição para a Sagrada Liturgia da Igreja Católica. Afinal o CONCÍLIO VATICANO II continua vivo, vigente e em plena aplicação, estando prestes a completar 50 anos, fato que determina a obediência de todos os cristãos católicos, leigos ou ordenados, às suas normas e diretrizes litúrgicas, dasautorizando-os a agirem fora dos cânones Conciliares ou a se apropriarem das celebrações litúrgico-sacramentais para submeter a liturgia à sua criatividade pessoal, subvertendo, dessa forma, o seu sentido simbólico-sacramental e teológico e desfigurando os ritos, para seguirem de acordo com suas deliberações pessoais, porquanto a Liturgia não é uma opção pessoal, mas, "é o cume e a fonte da vida da Igreja". (SC 10). Portanto, o cume deve ser atingido e a vida da Igreja preservada.