domingo, 14 de novembro de 2010
NUNCA SOZINHA
Maria Inez do Espírito Santo
www.mariainezdoespiritosanto.com
Nunca estive solitária aqui.
Tudo começou com um conselho do jovem previdente:
- Compre uma terra!
E eu, mãe orgulhosa da sensatez do filho que adivinhava, sem saber, o meu passado mais remoto, quando, desde menina, delirava uma vida natural num campo perfumado, aceitei o território que me surgiu prazenteiro, como por magia.
Cheguei trazendo comigo um projeto de estar apenas, autorizado pela fantasia (engano?) de um outro. Ele gabava conhecer, de perto e de longe, a vida que eu sonhara. Peguei carona na admiração que brotou da escuta, tão fácil, espontânea, e aguardei por longos anos a hora em que apareceria, na cena em que se estendeu, preguiçosamente, o meu herói camponês imaginário.
Naquela época, quando reconhecia, em mim, o tempo de estio ameaçador, me preparava para uma determinada visita, com que sonhara de há muito, e arranjava cuidadosamente seus quereres num quase organizado cotidiano, e ia, assim, formando sua presença: o fogão de lenha, a chaminé, a fumaça dançando no ar, seriam minhas salvas a sua chegada triunfal... Até que esse tempo de espera foi se esgotando, imperceptivelmente como a nuvem cinzenta que se espalhava sobre o telhado, em direção ao céu ...
Houve época em que, sozinha, preparava diariamente um ninho de cura. Dentro de mim, projetado, agonizava um outro ser que eu havia conhecido vibrante e que eu julgava poder salvar. Os frutos da terra iam sendo colhidos e transportados até ele, com a dedicação hercúlea de quem não tem escolha senão servir ao imperioso da Vida. Em cada minha chegada, a este sítio, naquele tempo, mesmo tarde da noite, eu aspirava no perfume do ar e na magia do entorno, o éter que me envolvia, trazendo presenças imaginárias com as quais eu faria reviver o meu amado... que se foi, alheio a este mundo que eu mantivera incólume, para protegê-lo.
Houve épocas em eu vinha trazendo na bagagem pesada, apenas o cansaço e um desânimo sem fim. Mas mesmo este estado, brotado e preenchido de tantas e tantas histórias acontecidas nos fatos, acabava por me amornar das lágrimas, a alma congelada à força.
Até que um dia, de tanto me ouvir falar, orgulhosa, da terra, das fortunas e das riquezas que eu aqui vinha encontrando, começaram a surgir os compradores. Pretendentes à herança do sossego e de uma verdadeira experiência de ser, eles vieram e leram, em mim e para mim, os detalhes de um mundo forte, vigoroso e precioso que eu construíra de muitas ruínas e alguma esperança. Um mundo que eu não reconhecia mais.
Logo, porém, também estes partiram, por não poderem afirmar suficientemente sua querência, ou talvez por temerem uma presença maior, que me acompanha inexplicável e irremediavelmente.
Nunca estive sozinha, agora sei. Dorme e acorda comigo a certeza de que aqui sou. Assusta-me, em algumas noites, e surpreende-me, em momentos raros, a percepção que tenho de minha pequenez e de sua potência.
Hoje fechando a porteira, ao entrar, pensei, com carinho e gratidão, em todos esses parceiros que vivem a meu redor. São bem vindos e me amparam, porque ampliam o sentido de minha vida. Aqui.
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