Padre Beto
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Em um antigo livro irlandês sobre pescaria pode-se ler que em tempos remotos, quando uma forte tempestade estava para chegar, os pescadores medrosos e inexperientes aportavam rapidamente seus barcos nas encostas das ilhas e permaneciam em terra. Os pescadores mais experientes, pelo contrário, justamente pela eminente chegada de uma tempestade avançavam para águas mais profundas. O antigo livro explica que mesmo diante das mais terríveis tempestades, as embarcações estão a salvo em alto mar com um habilidoso navegador. As mais fracas tempestades, porém, podem arrebentar os barcos se estes se encontrarem aportados nas encostas das ilhas.
Todas as coisas em nossa existência estão submetidas a dois movimentos: o ser e o deixar de ser. Coisas, animais e seres humanos estão em um constante movimento dialético do tornar-se, do transformar-se. Mesmo que tenhamos a necessidade de nos sentirmos seguros, a segurança é uma ilusão, pois a vida é movimento. Apesar de desejarmos que os momentos prazerosos permaneçam, é inevitável que eles se tornem passado. Já dizia Heráclito que não se pode banhar-se duas vezes nas mesmas águas de um rio, pois tudo flui e nada permanece. Segundo o filósofo grego, o universo é regido pela lei do "logos" e este significava o fatal processo de transformação. O próprio viver inclui a ação e esta nada mais é que a mudança de formas em nosso universo. "O homem nasceu para a ação, tal como o fogo tende para cima e a pedra para baixo" (Voltaire). Esta fluidez da vida e a transitoriedade dos seres se desenvolvem para Heráclito através da dinâmica dos contrários. O nosso universo, e com ele o viver humano, se movimenta na alternância de elementos que se contrapõem: o quente vira frio, o frio quente, o úmido torna-se seco e o seco umedece. Nada pode ser realmente compreendido sem a existência de sua oposição. A vida está relacionada à morte, o despertar pelo fato de estarmos dormindo, o dia se alterna com a noite. Compreendemos verdadeiramente o que significa o prazer porque experimentamos também o desprazer. O doente compreende realmente o significado da saúde e o preso aprende com profundidade a importância da liberdade. O sentimento de estar distante de Deus torna-se na verdade uma profunda experiência de Deus e muitas vezes nos afastamos Dele quando nos sentimos impecáveis religiosos.
A dinâmica dos contrários, porém, não desenvolve a vida apenas pela alternância dos opostos, mas sim pelo conflito dos mesmos. A relação conflituosa é inevitável e, através dela, a mudança se realiza e os seres se mantêm em movimento. "A luta é o pai de todas as coisas", afirma Heráclito. Justamente o conflito dos opostos que nos leva a vivenciar a crise. A expressão grega "krisis" significa um momento decisivo que nos leva à ruptura com o estado anterior. Toda crise se constitui em um espaço doloroso e angustiante de desestruturação da ordem existente. Na escrita chinesa, a palavra "crise" é composta por dois caracteres - um representa perigo e o outro representa oportunidade. A partir da crise acontece a mudança, seja esta para pior ou para melhor. O resultado depende do grau de perspicácia com o qual vivenciamos a crise. De qualquer forma, na luta (pólemos) ou no conflito (éris) dos opostos o ser humano deixa a periferia da vida atingindo sua essência, ampliando seus horizontes e valorizando aquilo que deve ser valorizado. O amadurecimento individual, o relacionamento de amizade e a relação amorosa adquirem a chance de sair da superficialidade quando vivenciamos as falhas, as dúvidas, as divergências e, através delas, aprendemos o novo. "Para agir torna-se indispensável uma grande dose de defeitos. Um homem sem defeitos não serve para nada" (Jacques Chardonne).
O conflito dos opostos e a crise devem levar, porém, o ser humano a um equilíbrio das diversas forças e tendências em sua vida. Este equilíbrio dos opostos, ou seja, aquilo que chamamos de harmonia, surge quando aprofundamos a relação conflituosa e, através dela, chegamos a uma momentânea, mas revigorante, unidade. A crise deve fazer com que os opostos se relacionem e tornem-se um. De tudo torna-se um e de um tudo, dizia Heráclito, o primeiro pensador da dialética. "Há espaço para tudo num coração cheio, e não há espaço para nada num coração vazio" (Antonio Porchia).