terça-feira, 2 de novembro de 2010

AS GRADES DO SILÊNCIO

Djanira Silva
djaniras@globo.com
http://blogdjanirasilva.blogspot.com/


            Sempre disseste que o escritor mente e fantasia. É verdade. Acontece, que sua habilidade está exatamente em saber transformar o irreal em realidade. Digo isto pensando que, onde quer que estejas, deverás estar rindo, sorrindo ou zombando - sem palavras, é claro.
            A forma materialista de encarar a vida nunca te permitiu olhar para as estrelas. Deixa-me falar.
            Certa vez me garantiste que jamais serias escritor ou poeta. Escritor por não saberes inventar histórias. Poeta por não acreditares nas mentiras deles. Cedo percebi que eras avesso às incertezas e loucuras dos sonhos. Sempre com os pés no chão. Hoje, não apenas os pés, teus passos enterraram teu corpo no para sempre.
            Porém, havia algo em ti que me fascinava: o silêncio.Eras feito de um silêncio profundo,profundo e misterioso,poço de infinita grandeza onde ninguém – a não ser tu mesmo – conseguias penetrar. Um mistério que me atraiu e me levou a permanecer até o fim tentando abrir as portas de uma masmorra onde viviam aprisionadas palavras que temias libertar.
            Não sei se indiferença ou medo. Fosse o que fosse te engoliu, te calou. A mim, às vezes, me parecias não ter sentimentos. Nunca te decepcionavas com pessoas nem situações. E o meu dilema? Como conseguir abrir as portas de um mundo onde vivias fechado, liberando apenas sorrisos misteriosos e indefinidos que não deixavam transparecer qualquer sentimento.
            Ajudar? Só se te pedissem e, assim mesmo, se pudesses fazê-lo sem prejudicar teus próprios interesses. Lembro-me de que certa vez me disseste: ajudar é humilhar o outro. Acho, que tinhas razão. A pessoa ajudada, na verdade, sempre se encontra numa situação de inferioridade. Cada vez em que nos olha julga que estamos lembrando do favor que lhe fizemos. É algo assim como se cada olhar fosse uma cobrança.
            Sempre gostei de monologar contigo pois nas raras vezes em que falavas, tuas palavras me despertavam para alguma verdade. Não jogavas conversa fora, nem dizias palavras inúteis. Hibernavas no silêncio e quando, voltavas a falar, havia sempre uma lição em cada sentença. Envio-te, daqui, meus pensamentos afoitos e irreverentes para quebrar a monotonia de tantos anos de silêncio e a incerteza de não saber se um dia nos encontraremos já que te perdeste no tempo de ir, deixando-me no de lembrar.
            Hoje penso que teu silêncio era um tumulto contido e perigoso. Era a virada do vento, o ritmo de um samba o calor do passo ou o rebolar da mulata nos quartos crescentes da lua. Loucura? Existe alguma coisa mais insensata do que o pensamento?
            Passadas compridas, caminhos de cobra no andar sinuoso das estradas.
            Um cão que late enquanto urram os tambores no ressoar do vento no som e no grito da alma desmantelada. Nos lábios o sorriso, no corpo a luxúria a repercussão de um som que morre enterrado em tua alma fria. Alma ensaguentada por um silêncio que pode ser o vento, a tempestade o medo, o batuque do negro na senzala a mucama na cozinha, o bater do sino na capela, a tristeza do banzo inventando a saudade. Por que nunca choraste? Na placidez das águas o crocodilo assombra as águas o elefante esmaga a própria sombra e o homem em silêncio mergulha a alma em poças de sombras.
            Bate o tambor, marca o tempo. Será o vento?
            Não, não é o vento é a amargura do teu silêncio perdido no tempo.