Ivone Gebara *
A vitória de Dilma é uma grande conquista para muitas de nós mulheres e para o povo brasileiro. Conquista não apenas política, mas de afirmação de que as mulheres no Brasil passam agora a simbolizar o mais alto escalão do poder público do país. É claro que isto incomoda muita gente, inclusive mulheres, para as quais tal representação simbólica não é necessária. Mas, agora todos os irados e as incomodadas terão que lidar com esse fato: Dilma é nossa presidenta!
Nossa alegria pela vitória está misturada com várias apreensões. Uma delas é em relação à imagem que parte da imprensa quer apresentar de Dilma pelo menos no momento. Além de acentuar seu percurso de guerrilheira a chefe da Casa Civil, a meu ver honroso, apresentam-na como "feita" por Lula, empurrada pelo sucesso do presidente, necessitada de Lula, seguidora fiel do presidente. Sem negar o imenso valor de Lula e de seu papel nessa eleição, muitos acentuam a meu ver uma dependência indevida, como se ela não tivesse trajetória política própria. Esquecem que sua história pessoal com seus acertos e erros a levaram a este cargo máximo da República. Esquecem-se que sua experiência de mulher pública se deu em instâncias diferentes do que a dos cargos políticos eleitos pelo povo. Ela não só conheceu os porões do poder ditatorial, mas as tramas políticas institucionais de diferentes tipos. Fez caminhos que nem sempre a grande imprensa quis conhecer e divulgar. Por isso, sua experiência diversa fará dela uma presidenta diferente.
Além disso, invertem o que se dizia no passado em relação aos grandes homens: "Por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher"! Agora é em relação às mulheres: "Por trás de uma mulher política deve haver sempre um grande homem" (que deve estar no fundo à sua frente). Assim se pensa em relação à Cristina Kischner e agora em relação à Dilma, embora os contextos e situações sejam diferentes. Assim se pensou em relação à Indira Gandhi, a Michelle Bachelet e a tantas outras. Que homens estariam sustentando-as no poder? Ou que homens poderão sustentá-las no poder? Que homens lhes darão as boas idéias para dirigir o país e os melhores conselhos para decisões presentes e futuras? Que homens serão seus ministros e conselheiros?
No fundo a cultura brasileira ainda guarda uma acentuada e preconceituosa hierarquia de gêneros e, sobretudo uma divisão valorativa entre o trabalho doméstico e o público. É com certa desconfiança que se entrega o poder político a uma mulher identificada simbolicamente com as lidas domésticas. E isso é ainda mais evidente quando ela não aparece acompanhada por seu "primeiro cavalheiro". Os presidentes da república em geral são acompanhados por suas primeiras damas mesmo que já estejam na terceira ou na quarta dama. Elas precisam aparecer ao seu lado como figuras decorativas e mesmo quando são mulheres de qualidade excepcional devem estar em geral caladas. Pouco se conhece da vida e do trabalho da maioria delas. O importante é salvar a aparência. E afirmar que se respeita uma ordem social estabelecida que muitas vezes é ordem fundada na hipocrisia. Mas, quando a presidenta eleita não tem "primeiro cavalheiro" e aparece andando sozinha apoiada nos próprios pés, íntegra e falando em nome da nação que a elegeu, os gigantes do poder só vêm uma alternativa para seu medo: desprestigiar essa mulher e nela as mulheres. Têm a audácia de mostrar propagandas representando-a como boneca oca ou com um homem desenhado no seu fundo. Não consideram a autonomia feminina, sua força criativa e suas capacidades pessoais. De todo jeito, lhe dão chances, sobretudo, se for rodeada de homens políticos cada um tentando abocanhar um pedaço da fatia pública política.
Se ela, Dilma, faz um discurso de agradecimento depois da eleição que para muitas pessoas foi uma verdadeira síntese de sua política na qual incluiu sua condição feminina e a de todas nós brasileiras, dizem que não houve nada de novo. Insistem em afirmar que o discurso foi lido, que é obra de muitas mãos ou que foi longo demais ou que não contemplou isso ou aquilo. Pode até ser em parte verdade. Mas, não há discursos universais e englobantes de toda a complexa realidade em que vivemos. Todo o discurso tem seus limites e seu ponto de vista imediato. No fundo, para muitos não se trata do discurso. É misoginia à flor da pele ou correndo pelas veias.
Atrevo-me a denunciar as muitas violências públicas em relação às mulheres como um ato político educativo preventivo nesse novo momento histórico. Igualmente é uma chamada de atenção para todos nós, mulheres e homens, em relação aos nossos preconceitos e a nossa incapacidade de acolher e provocar o diferente. Escrevo contra os muitos dragões poderosos que estão sempre preparados a lançar seu fogo destruidor acabando com as esperanças do povo e suas pequenas conquistas. Com certeza eles estão enfurecidos com a vitória de Dilma, a vitória de uma guerreira pela liberdade dos pobres, a vitória em parte representativa da força das regiões norte e nordeste afirmando sua cidadania e sua resistência. Também aqui se acusa o povo de ser ignorante e buscar apenas sua sobrevivência ou os favores do poder ou de seguir cegamente os líderes políticos do momento. Mas como ser politicamente consciente se a barriga está vazia? Como sobreviver se não há casa, comida e trabalho? Como sobreviver com o latifúndio, com os senhores ruralistas e com a mentira da propaganda consumista? O povo nortista e nordestino e outros provaram nesses últimos anos o gosto de uma cidadania incipiente apesar das inevitáveis contradições. E acreditaram que Dilma seria uma garantia para suas presentes e futuras conquistas.
Foram essas mulheres e esses homens da seca, dos mocambos, das palafitas, das ocas, dos terreiros, dos mangues com seus muitos aliados, que reconheceram em Dilma alguém capaz de, por sua história e suas lutas, sentir as dores do povo. Não sei como será seu governo. Não sei como será seu Ministério. Não sei como se conduzirá no futuro. Não sei igualmente que armações os dragões furiosos farão para derrubá-la ou para levantar falsos testemunhos contra ela.
Mas hoje ela está vestida de verde-amarelo, coroada com as vinte e sete estrelas que representam os estados do Brasil. Hoje, ela apareceu pisando nos dragões e com sua força interior conseguiu calar os seus urros e seu sarcasmo.
Reacende-se nossa esperança. Não vamos deixar Dilma sozinha. Vamos ser nós o povo organizado que governa o Brasil, o povo que opina, discute, sugere e cresce em conjunto. Sejamos muitas e muitos a organizar, a governar, a trabalhar a partir de nós mesmos. Temos que ser o que acreditamos que podemos ser. Começar mudando os nossos próprios comportamentos, com as pequenas coisas do dia a dia. Só assim podemos diminuir a força dos dragões e diminuir o medo que eles inspiram.
Para frente Dilma... Somos aliadas da mesma luta e da mesma esperança. Não estamos atrás de você, mas com você, ao seu lado nessa luta que é nossa.
* Filósofa e teóloga, feminista e escritora.