Vladimir Souza Carvalho (*)
Começo o exame da apelação pela sentença. Foi assim que me acostumei e é assim que faço, na condição de julgador de segundo grau. De cara, me deparo com algo que me irrita: alguns trechos do decisório estão grifados, em caneta de cor vermelha.Ver os grifos, tão escancaradamente, marcando a sentença, é algo que preferia evitar. Estou num beco sem saída: não há como enfrentar o apelo sem ler a sentença. Desta forma, os grifos vão se tornando mais presentes, para minha maior irritação.
Vou explodir no final do voto, com uma observação que termino encaixando na ementa. Explosão, não, um coice: "Indesculpável que mãos sebosas se dignem grifar trechos da douta sentença com lápis de cor vermelha, num gesto de profunda falta de educação, como se o texto ali colocado, representando a palavra do Estado-Judiciário, fosse um bilhete dirigido a um dos litigantes que, desta forma, se sente encorajado para ferrá-lo, com seus grifos, comoo pecuarista ferra, com sua marca, o gado que lhe pertence".
No fundo é um recado para quem riscou, ao se deparar com a observação, não mais assim proceder. Sei que pareço o velho professor do primário, de palmatória na mão, ameaçando o aluno de ganhar uns bolos se repetir a façanha condenada. Não vou discutir a similitude nem o aspecto.
Em Aracaju, no primeiro grau, muitas foram as vezes em que, confesso, parei a sequência de atos, para, ante o problema, condenar a façanha, com crítica ríspida, e perguntar as partes quem teve a coragem de riscar peças processuais ou decisões ali prolatadas. É como se parasse a viagem para discutir com o transeunte que jogava uma pedra no veículo, a figura do professor tomando conta da do magistrado, na tentativa de dar uma lição a pessoa que, lendo uma peça acostada aos autos, se sente no direito de riscá-la, grifando palavras ou cravando observações ao lado do texto.
Penso, invocando o mundo da Psicologia (do qual, sou mero curioso), na tentativa de elaborar um retrato doriscador, cuidar-se de profissional ainda inexperiente, trazendo para os autos o vício dos bancos acadêmicos quando, de lápis na mão, saía a riscar, nos livros, nas apostilhas, nas cópias xerográficas de textos, os trechos que mais lhe interessavam, como forma de melhor memorizá-los ou como maneira de destacá-los. Mas, venhamos e convenhamos, é aquela história de costume de casa não ir a praça, que tanto ouvi em menino, em Itabaiana. E aí, secamente, para ser melhor compreendido, invoco o arroto (desculpe o leitor mais cerimonioso) que, da mesa de casa, não deve ser trasladado para a mesa do restaurante, o que vai redundar num gesto indelicado e inadequado, além de impróprio e outros termos afins. Uma coisa é o estudante, com seus textos, seja do livro didático, seja das apostilhas. Outra coisa é o profissional, no exercício de uma atividade, e, aliás, importante, na defesa do direito de uma parte, com os autos do processo em mãos. O costume dos tempos acadêmicos não deve sentar a mesa de audiências do fórum.
Oprocesso, como meio via do qual o Estado-Juiz resolve os conflitos, deve se apresentar como algo formalmente limpo, sem manchas e máculas, os atos processuais sendo formalizados com a nitidez e compreensão das palavras, se constituindo em suas páginas no instrumento através do qual o Julgador se manifesta em seus despachos, decisões e sentenças, de forma a impregnar a todos, sobretudo aos advogados, que a eles, em nome das partes litigantes, têm acesso, o máximo respeito e cuidado, para mantê-los tão limpos quando os devolvem ao cartório, como limpos estavam quando lhes forem entregues. As faculdades, como centro de formação do futuro profissional, deveriam abrir, nas suas aulas de processo, um espaço permanente para chamar à atenção do aluno do cuidado e o respeito que deve ter, mais tarde, no exercício da atividade advocatícia, quando a oportunidade de manusear os autos lhe for dada.
Apesar de parecer rabugento, não me dou vencido, embora não cesse de erguer a palmatória. Ainda hei de passar um mês sem medeparar com uma sentença riscada.
(*) vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Diário de Pernambuco