terça-feira, 3 de agosto de 2010

TEMOS A IDADE DAS NOSSAS LEMBRANÇAS- ENVELHECEMOS QUANDO PARAMOS DE SONHAR



Djanira Silva
djaniras@globo.com
http://blogdjanirasilva.blogspot.com/


               O passado é um arquivo onde se guarda o tempo e onde são preservadas as imagens e as lembranças de todas as idades. É intransferível, inalienável, inviolável, personalíssimo. Membros de uma mesma família, de um mesmo tempo, têm visões diferentes de acontecimentos comuns. Tecnicamente existe a expressão arquivo morto onde são recolhidas informações fora de uso. Portanto, quando assumimos o lado negativo da vida, nossas lembranças vão para este arquivo.
               Manhã de maio. Vestido branco, flores de laranjeira. Vou ao teu encontro. Juntos partimos.. E, de repente, tua estrada termina. Estou sozinha, a casa em ordem arrumada pela solidão. Os filhos se foram levando, cada um, o seu arquivo.
               Manhã de chuva. Acordo. A tristeza me cerca. Escuto o pio agourento de uma coruja. Penso que vou chorar. Fecho os olhos. Nos pés de oiti, os pássaros cantam. O vento conta histórias de uma menina que conversava com gnomos e duendes, botava rabo de pano na saia da lavadeira e pintava os bigodes do gato com esmalte de unhas, fugia de casa para brincar na rua, levava palmada, e, no dia seguinte, fugia de novo para apanhar borboletas, colher pitangas, subir no pé de romã. “Desce daí, você cai”. Abro os olhos, saio da cama com a alma criança.. Lá fora apenas cantam os sabiás.
               À tardinha, sentada junto da janela, olho o jardim. Beija-flores e borboletas, rosas, cravos e lembranças. “Borboleta quando quer se perder cria asas”. A voz da mãe, que ainda me alcança, prevenia dos perigos do mundo. Perigos que me atraiam nas mudanças anunciadas.. Já deixara para trás as meias soquetes, os sapatos pulseira, os vestidos de menina. Cabelos sem laços sem tranças. Ainda não era tempo de ruge e batom nem de sapatos altos. Só depois dos quinze anos. Vestidos marcados na cintura denunciavam as urgências do corpo. Imitar as artistas de cinema, nas roupas e nos trejeitos era moda. Vivo, intensamente, nas lembranças da primeira valsa, das mensagens de amor, lidas no auto-falante, das músicas de Orlando Silva, Chico Alves, Dalva de Oliveira. Os primeiros namoros, o primeiro beijo desejos à flor da pele. O perfume do pé de jasmim plantado sob a janela, leva-me de volta às noites chuvosas de começo de inverno quando o cheiro molhado das várzeas se espalhava pelas ruas e praças e pelos caminhos dos encontros proibidos. Na igreja, as flores, as velas acesas, o incenso queimando e o cheiro de lavanda nos cabelos. Lá fora, encontros marcados. Fecho a janela, carrego comigo a alma adolescente.
               O riso das crianças por toda a casa. De manhã, hora de irem para a escola, sono e muita preguiça, Ainda calço-lhes as meias. A roupinha azul, o monograma no bolso, caminho da escola. As travessuras, as coisas engraçadas que dizem, o sono na hora do jantar. Vê-los crescer e enfrentar a vida. Fecho os olhos. Já não quero chorar.
               Lá fora cantam os passarinhos. Dentro de um só tempo fui criança, adolescente mulher madura, feliz em todos.
               Tenho a idade das minhas lembranças, e quando por acaso fraquejo faço uma transfusão de saudade.


Obs: Imagem enviada pela autora.