Miguel Torga*no Olhar de Uma Criança
Um Conto em Tempo de Meditação
por
J. A. Horta da Silva
J. A. Horta da Silva
Ex-Director do INETI (Coimbra)
(horta.silva@sapo.pt)
O Tejo estava engelhado sob o efeito de uma aragem agressiva vinda de sudoeste, sem dúvida desagradável para quem quer que estivesse nos tombadilhos de bombordo. Olhei à minha volta e não vi ninguém. Estava acompanhado pelos meus pensamentos e pelas imagens daqueles que nos disseram adeus no cais de Alcântara. Os meus pais fizeram sacrifícios para me dar uma enxada, e o canudo atirou-me para um paquete da Companhia Colonial de Navegação a caminho do desconhecido. O meu pai era marceneiro de alta escola. Dedicava-se quer aos estilos ingleses, com as suas teias de vidrinhos, quer aos estilos D.ª Maria e império, onde abundam embutidos de grande beleza artística, feitos com madeiras nobres e contratantes. Tinha uma clientela reputada e, entre os seus clientes, havia um médico de fácies rude e falas bucólicas ornadas por um sotaque transmontano, muito provavelmente assimilado entre fragas de granito. A minha infância fora atribulada, estando por explicar por que razão as maleitas que me visitaram nunca se deram ao trabalho de me levar antes do tempo. Tinha e tenho umas narinas largas como a frente de um wolkswagen carocha, devido à utilização de rolhos de algodão ensopados em água oxigenada e em sumo de limão que serviam para estancar as hemorragias.
O médico laqueava-me as veias, que rebentavam com teimosia, não sei se por fatalidade ou por afronta. O consultório ficava no Largo da Portagem e, para lá da porta, uma mesa secretária com artroses e equimoses esperava os pacientes não raramente atoalhada por alguma papelada. Muito embora as folhas não tivessem motivos coloridos que cativassem a atenção de uma criança, eu preferia concentrar-me na bagunça dos entreténs do médico do que nos fundos do consultório, onde sobressaia a cadeira da tortura aconchegada de utensílios dados a suplícios terapêuticos. Nunca descobri por que razão a resma de papel junto da janela me seduzia mais do que qualquer outra. As vidraças mostravam a estátua de Joaquim António de Aguiar** de viés, razão pela qual me pareceu que o Mata Frades e o médico andavam de candeias às avessas, a esconder coisas que a História queria que fossem divulgadas. Um dia, a coberto de uma conversa acesa que girava em torno de uma papeleira feita para um insigne Professor da Universidade, dei-me ao atrevimento de deitar os olhos à oculta novidade, enquanto o meu pai argumentava, dizendo que um marceneiro não podia comerciar somente com gente da oposição. O médico falava do valor da arte e aconselhava o amigo a assinar as obras que produzia. Aproveitei o ensejo, levantei as folhas, mas fiquei desolado: continham versos rascunhados que não consegui entender.
O médico nunca cobrou dinheiro pelas consultas e, ao descer as escadas compridas e estreitas, que conduziam ao consultório, o meu pai repetia, invariavelmente que, além de ser competente, aquele homem era muito boa pessoa e, ainda por cima, dado às letras. Escrevia livros. E ao som dos gemidos de alguns degraus carunchosos, dei comigo a magicar como é que um homem de aspecto rude podia ter um coração doce, e como é que um médico que tratava de anginas e narizes podia ser escritor. Por essa altura, procurava entrar nos domínios de Emílio Salgari e lia fluentemente “O Mosquito”, onde “Cuto nos Domínios dos Sioux” era a minha história preferida, mas nada do que lia tinha a ver com medicina, narizes e garganta e fiquei admirado quando soube que foi aquele médico, de feitio agreste, que aconselhou o meu pai a matricular-me no Liceu. Muito provavelmente, se não fosse doente do nariz, não era aquilo que hoje sou e não estaria a estas horas a olhar a margem sul do Tejo sem a ver, esquecendo-me por completo de ir ao convés de estibordo admirar a Torre de Belém, os Jerónimos e Cascais. «Será que Coimbra estava apostada em copiar o trajecto decadente de Alexandria, que permitiu a fuga do saber por troca com o pedantismo?» E todas estas recordações geravam, em mim, uma sublime embriaguez até que, à passagem pelo Forte de S. Julião da Barra, uma vaga agigantada bateu com estrondo no navio, clamando pelo presente. O mar esperava-nos de mau feitio, facto que, por experiência própria, podia ser bom presságio. E, agarrado aqui e ali, lá me fui esgueirando até ao camarote, onde Lena me interrogou sobre o motivo da demora…
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* Miguel Torga (1907-1995) – Pseudónimo de Adolfo Rocha, médico otorrinolaringologista dado às letras e opositor ao regime de Salazar. Poeta, romancista, contista e dramaturgo, cuja obra está traduzida nas línguas europeias e também em línguas asiáticas, nomeadamente chinês e japonês. Nasceu em Sabrosa (Trás-os-Montes) e viveu em Coimbra. Ganhou vários prémios literários e foi nomeado para o Nobel da Literatura.
**Joaquim A. Aguiar (1792-1884) – Natural de Coimbra, onde se doutorou em leis. Foi liberal combatente, tendo desempenhado, entre outros, o cargo de Ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça de D. Pedro IV. Decretou a reorganização dos municípios e a extinção das ordens religiosas, mandando incorporar os seus bens na Fazenda Nacional, facto que lhe valeu a alcunha de Marta Frades