terça-feira, 24 de agosto de 2010

NÃO MAIS QUE QUERER BEM



Padre Beto
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Por estar muito idoso e não podendo mais viver sozinho, o senhor Miguel foi levado para a casa de seu filho, um empresário bem sucedido. Durante as refeições, porém, era inevitável que o velho deixasse cair comida à mesa ou em suas roupas pois suas mãos haviam se tornado trêmulas. Às vezes, um pouco de sopa escorria-lhe pela boca, situação esta que criava um desconforto não somente para seu filho, mas principalmente para sua nora, uma moça de educação fina e requintada. Por não suportarem mais estes comportamentos desagradáveis, o empresário e sua esposa chegaram a um consenso: o velho deveria fazer suas refeições na cozinha. Lá ele estaria sozinho e não estorvaria ninguém. Certo dia, senhor Miguel derrubou seu prato no chão quebrando-o em vários pedaços. Um prato de madeira foi, então, pela nora, providenciado para o sogro. Depois de algumas semanas, o netinho do senhor Miguel trouxe para casa uns pedaços de madeira. "O que você vai fazer com isso, menino?", perguntou o pai. "Eu vou fazer uma pequena tigela", respondeu o garoto, "dessa tigela o papai e a mamãe vão comer, quando ficarem velhos!" Os pais se olharam fixamente. O senhor Miguel foi convidado naquele mesmo dia a sentar-se junto com eles à mesa. E nunca mais tocaram no assunto.

Já no início de seu livro "A Arte de Amar", Erich Fromm esclarece ao leitor que o ser humano só é capaz de sentir amor pelo outro a partir do momento que procura desenvolver sua própria personalidade, em outras palavras, o amor só é possível quando conseguimos uma consciência da própria natureza humana. Apesar de romantizado e idealizado em demasia, o sentimento de amor, em sua essência, pode ser traduzido como um "bem querer", o qual só pode surgir através da interação íntima entre satisfação pessoal e o prazer alheio. Querer bem significa se realizar como pessoa ao fazer o que é propício ao outro para que ele também tenha condições de realização pessoal. Este não mais que bem querer é chamado por Leibniz de "amor benevolentiae", que deve, segundo o filósofo, ser diferenciado do "amor concupiscentiae". Enquanto este último se reduz ao desejo instintivo e individualista, o "amor benevolentiae" muitas vezes se torna ambíguo em relação aos impulsos instantâneos, vantagens individuais e prazeres momentâneos. Nós sentimos "amor concupiscentiae" em relação ao outro, quando o amamos como parte de nosso mundo, devido ao prazer que encontramos em sua companhia ou a algum benefício que recebemos através dela. O outro é amado por realizar uma determinada função e deixa de ser objeto de nosso amor a partir do momento que não é mais capaz de cumpri-la. Ao contrário deste modo egoísta de amar, o "amor benevolentiae" não se alimenta da simples satisfação de nossas inclinações e muito menos de um funcionalismo justificado. "Depois de algum tempo você.... aceita que não importa quão boa seja uma pessoa, ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la por isso" (W. Shakespeare). Uma outra pessoa se torna importante não por aquilo que ela é para "mim", mas por aquilo que ela simplesmente é. Esta capacidade de amar o outro exige não somente a compreensão de nossa própria natureza, mas também o esforço simultâneo de desenvolver um "amor a si próprio". Fundamental para reconhecer e respeitar o outro em seus desejos e ideais próprios é a descoberta e estima de nossa própria personalidade. A partir daí podemos sair de nossa centralidade e perceber o outro como alguém que pode e deve ser autêntico. O amor ao próximo deve ser um caminho para a descoberta do próprio eu. Nós conseguimos amar o próximo quando somos capazes de nos amar e a satisfação no amor individual não pode ser atingida sem a capacidade de amar nossos semelhantes. "Sem eus nunca existirá nós. O nós é feito de eus" (José Eustáquio). O significado de minha vida para o outro deve se tornar um motivo, para que eu descubra minha importância. Ao ser capaz de me amar, com meus defeitos e qualidades, sou capaz de entender o outro e amá-lo por causa, ou apesar, de sua maneira de ser. O verdadeiro amor somente é possível, segundo Aristóteles, como um recíproco bem querer que deseja e permite que o outro possa ser ele mesmo. O "amar ao outro como si próprio" citado nos Evangelhos, a "amizade" no sentido aristotélico, ou o "amor benevolentiae" descrito por Leibniz só é possível quando as pessoas se aceitam na sua condição humana. O amigo, diz Aristóteles, não é estimado por que possui determinadas qualidades, através das quais ele se torna para mim útil ou agradável, mas simplesmente ele é estimado pela minha capacidade em reconhecê-lo como um semelhante. Alegrias e prazeres que podem surgir desta amizade devem ser conseqüências agradáveis da relação humana e não a sua razão de ser. A amizade com alguém deve tornar-se para seus amigos um prazer, sem que estes possam dizer que ela existe em razão deste prazer. Não podemos experimentar o amor sem levarmos em conta o nível de maturidade que alcançamos. "No amor ocorre o paradoxo de dois seres se tornarem um, mas continuarem a ser dois" (Erich Fromm).