terça-feira, 3 de agosto de 2010

ACERCA DE LAVANDEIRA E DE PARDAL

 Vladimir Souza Carvalho *


A lavandeira deu sorte. Moleque nenhum, dos do meu tempo, se atreveu a lhe atirar pedra, passando, desta forma, incólume a toda caçada. Sorte da lavandeira que o fogo-apagou não foi também beneficiado pela mesma história, que muito ouvi, quando criança, de ser ela, a lavandeira, a encarregada de lavar as roupas de Nossa Senhora. Daí a crença de ser um passarinho praticamente sagrado, embora lhe falte a bênção papal. Talvez tenham se inspirado no seu jeito humilde e canto transformado em pequeno e modesto pio.

O bem-te-vi, que tem um canto mais forte, estridente mesmo, sendo garboso e posudo, coitado, foi amaldiçoado com a incriminação que lhe fizeram. Os soldados (devem ser romanos, porque, à época, os norte-americanos do norte ainda não invadiam nenhum país) a procura de Jesus, quem viu Jesus, quem viu Jesus, e o bem-te-vi respondia: eu vi, ou, bem que eu vi. Daí: bem-te-vi.

São histórias do tempo do cuspe que muito escutei, bem inocente, de minha mãe. Não sei se as mães de hoje encontram espaço para contar tais coisas aos filhos, nem, mais importante ainda, se sabem de tais fatos para poder passar adiante.

Nunca fiz pesquisa para encontrar as respostas devidas. É certo que, se minha mãe ouviu, é porque alguém, antes dela, já tinha fincado raízes em livro, narrando os ocorridos com a lavandeira e o bem-te-vi, de forma que deve ter sido lhe passado pela sua mãe, ou, se esta não encontrou tempo porque engravidava todo santo ano, o foi por outra pessoa de idade avançada. A realidade é que tais histórias eram comuns na década de cinquenta do século passado, histórias que me vêm sempre a mente quando me deparo com lavandeira e com bem-te-vi.

Houve um tempo em que as lavandeiras escassearam, enquanto o número de pardais foi aumentando e aumentando. A explicação que me deram é de terem os pardais invadido os ninhos das lavandeiras, ocupando o espaço que antes lhes pertencia, porque, ninguém duvide, os pássaros também se apresentamcom seus litígios e picuinhas. Uma vez mesmo, vindo de Maceió para Aracaju, em uma parada obrigatória em São Miguel dos Campos, assisti, estarrecido, a uma briga de dois pardais com uma andorinha, na busca de um ninho, que era da andorinha, fincado na parte que segurava uma lâmpada fluorescente da rodoviária. Peleja danada!

De milho cozido na mão, com que forrava a barriga para a paciente viagem de volta a Aracaju, parei para melhor testemunhar, se fosse necessário depor em alguma delegacia policial. A andorinha colocava um pardal para correr, perseguindo-o implacavelmente pelo teto da rodoviária. Quando retornava da tarefa, acreditando que, enfim, ia ter paz no seu ninho, encontrava lá, alojado, o outro pardal. Nova perseguição, voltando o fato para o seu começo, no bis que só findou quando entrei no ônibus, porque aí nada mais vi, nem no outro dia, em Aracaju, buscando notícias nos jornais, encontrei nada, absolutamente nada, a respeito da incansável peleja que, na rodoviária de São Miguel dos Campos, umaandorinha travou com dois insistentes pardais. É pena que nenhum violeiro estivesse presente para imortalizar a luta em seus versos quebrados.

A lavandeira ficou, mercê da história de lavar as roupas de Nossa Senhora, que eu acreditava, com seis, sete ou oito anos, livre da pedra das baleadeiras, podendo catar restos de comida nas ruas, condenada a viver sempre em liberdade, sem nunca ter conhecido o poleiro da prisão de uma gaiola. Bom para elas.

O chato é que os pardais, trazidos para o Brasil no começo do século passado, para comer insetos nas favelas do Rio de Janeiro, espalhando-se, em mais de cem anos, por todo o território nacional, não tomaram conhecimento do caráter sagrado das lavandeiras, terminando por tomar-lhe os ninhos. Faltou a Oswaldo Cruz, responsável pela ideia, escalar alguém para contar a mesma história da estreita ligação das lavandeiras com Nossa Senhora. Talvez, se alertado para a sua condição sagrada, o pardal teria, por certo, como bom português, e assim, católico, respeitado o seu ninho. Acredito.


* vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Diário de Pernambuco