Sebastião Heber
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Analisando as circunstâncias em que era administrado o Batismo, o nível de consciência do escravo a ser chamado a participar da nova fé, tudo ficava em segundo plano, pois já fazia parte do contexto religioso-social a necessidade de ser batizado, como também era necessário que houvessem escravos para manter o trabalho.
Uma vez comprovada a necessidade da vinda de escravos africanos para o cultivo da terra e considerando que a teologia não punha nenhuma dúvida sobre a legitimidade de tal recurso, a etapa seguinte era converter os pagãos, que agora começavam a integrar uma sociedade cristã e católica.
Pouco a pouco vai surgindo outro grupo: os mestiços, que são o produto – resultado da natural miscigenação que predominou marcadamente na formação do brasileiro. Para cumprir a sua missão, a Igreja logo percebeu várias barreiras, mesmo desafios, vindo da heterogeneidade de culturas, com visões do mundo e da vida bastante diversas. De um lado, os portugueses e mestiços já batizados; do outro, os índios e negros ainda por batizar, com outra cultura, diferença de língua, costumes diversos, sobretudo com a diversidade enorme de motivações.
A catequese dos negros, levando em conta a sua situação, visava incorporá-los à cristandade, dando-lhes os rudimentos da doutrina necessários para torná-los mais dóceis e mais conformados. Evidentemente aquilo era superficial e levava em conta apenas os pontos básicos da Fé. A adaptação da linguagem era de difícil acesso.
A pregação era realizada sempre a partir do Catecismo na linha das normas do Concílio de Trento, redigido para auxílio dos párocos. Os métodos da pastoral eram aqueles conhecidos na Europa e que se faziam em Portugal. Estes eram pura e simplesmente transportados ao Brasil. Para aquele tipo de público, o conhecimento da doutrina era primário, pois era vista e aprendida através de formulações abstratas, de exposições acadêmicas, fixadas em pontos de “verdades eternas”, deixando de lado pontos importantes dessas mesmas verdades. Havia um baixo nível de consciência crítica nos evangelizadores e muito menos ainda nos evangelizados, que não podiam ser em nada estimulados nessa direção.
Pode-se, pois, falar de uma “catolicização apressada dos escravos”, pois a própria instituição da escravidão era um empecilho para uma iniciação cristã, com todas as suas conseqüências desumanas. As condições em que se verificavam essa evangelização e iniciação eram precaríssimas, pois muitas vezes eram já batizados nos navios, em condições de viagens as mais promíscuas, sem saber a razão daquele “pequeno banho”. De fato, havia uma mentalidade de não querer que a “Terra de Santa Cruz” (como era chamado o Brasil nos primórdios) fosse tocada por pés pagãos. Os registros da Bahia mostram que, entre as condições para se efetuar o tráfico de escravos, estava uma que obrigava a ter um sacerdote a bordo, “sob pena de 20 dias de prisão ou multa de 20 mil réis”. “Ao chegarem da África, os negros que não foram batizados em Angola, em Moçambique ou outros lugares, são batizados ao desembarcarem no Brasil; mas isso não passa de uma formalidade, pois não se lhes dá instrução alguma”, é o que observa Koster nas suas viagens ao Brasil no início do século XIX.
Com a vinda do governador Mem de Sá, em 1557, registraram-se os grandes batismos solenes para os brancos. Em certa ocasião, o governador citado “foi padrinho de 84 inocentes”, batizados de uma só vez.
Somente dois séculos depois da descoberta do Brasil é que surgiu o primeiro documento oficial que regulava a pastoral. Esse desce a detalhes, como a catequese e o batismo dos escravos São as “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, em 1707.
Mas, mesmo assim, já no final do século XVI, há qualquer informação reduzida ou dispersa, por exemplo, com o Pe. Anchieta, que em 1584 trata das missões populares realizadas nos engenhos: “O método que se adota nessas missões é ensinar e explicar a doutrina cristã aos índios e africanos, reunidos em um lugar e batizar...”. E mais adiante informa, referindo-se a Pernambuco: “Contínuas excursões se fazem aos engenhos de açúcar que encerram grande quantidade de africanos... nestas missões os nossos tinham batizado 190”.
Ou ainda nos mesmos engenhos: “... Catequizam, batizam e acodem a outras necessidades extremas, não somente dos portugueses, mas principalmente dos escravos da Guiné, que serão até 12.000...”.
Mas, de fato, serão as já citadas Constituições que irão fornecer os maiores dados. Elas se preocuparam com o batismo dos escravos, nelas são ditadas normas pastorais procurando critérios que variavam de acordo com a mentalidade e capacidade das pessoas. Contudo, isso não significa que após as “Constituições” as normas foram seguidas e muito menos antes delas. Como base para a formação, as “Constituições” falavam em “um catecismo acomodado ao modo de se comunicar dos escravos” e sua compilação foi motivada, “porque os escravos de nosso Arcebispado e de todo o Brasil são os mais necessitados da doutrina cristã, sendo tantas as nações e diversidade de línguas ”.
As “Constituições” não deixam dúvidas sobre a obrigatoriedade dos senhores em promoverem a formação religiosa e quanto à liberdade de receber o batismo. Mas, na prática, sabemos que a catequese e a instrução foram absolutamente insuficientes. A alma do africano permanecia naquelas condições em que vivia, profundamente ligadas às suas raízes e aos seus cultos. Porém, o catolicismo que ele encontrou, originário da mentalidade popular portuguesa, era extremamente exteriorizado, com uma excessiva devoção aos santos, com uma grande variedade de imagens. A isso o escravo tratou de integrar-se e, sob certo ângulo, sentiu-se bem, pois houve uma mudança de santo, porém, em relação à mentalidade, essa permanecia a mais arraigada nas práticas da África.
Sebastião Heber.Professor Adjunto de Antropologia da Uneb, da Faculdade 2 de Julho.Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris.