Dade Amorim
dedaamorimo@gmail.com
Ao contrário de Descartes, penso mas não existo. Faço mais: escrevo mas não existo, mesmo tendo dois livros publicados, um em gestação e outras fraquezas na gaveta. Acordo pela manhã, faço quatro refeições diárias – e às vezes como mais do que devia; tomo banho, canto no chuveiro, escovo os dentes e vejo no espelho uma imagem que, se não me deixa eufórica, ao menos parece bem real. Leio jornais, livros, textos da Internet, papéis avulsos e bula de remédio; faço compras, vou ao médico. Nasci, cresci, casei e tive filhos, tenho netos, canto parabéns nos aniversários, dou e ganho presentes, mas não existo. Ainda assim, tenho vários quadros pendurados em diferentes paredes e ainda pretendo pintar outros.
Cursei graduação e algumas pós, trabalhei mais de 30 anos, tenho conta em banco, faço oficina de poesia, me aposentei e declaro IR, mas mesmo assim não existo.
Amo viajar, tirar férias, ir à praia e à serra, adoro um papo até pelo telefone, tenho uma família divertida, amigos ótimos. Tenho quatro e-mails, converso no msn, blogo, ando de metrô, de táxi, de avião. Faço caminhadas, pratico Pilates, faço acupuntura por causa de um joelho complicado. Cozinho mais ou menos, detesto lavar louça e passar roupa. Gosto de pessoas leais e criativas. Escuto muita música, assisto tv, vou ao cinema e ao teatro e minhas unhas andaram lascando.
Muito embora seja uma pessoa inexistente, tenho carteira de motorista, de trabalho, passaporte, certidão de casamento e título de eleitor. Com tudo isso, porém sem carteira de identidade, nada feito. Pasmei ante o fato de a carteira de trabalho não ser universalmente aceita como identificação pessoal, ao menos no âmbito das instituições brasileiras.
Tive até duas carteiras de identidade, a primeira do IFP, que sumiu, e a segunda (provisória) do Detran. Várias vezes pedi outra, mas o processo caía “em exigência”; os preclaros funcionários daquela repartição me explicavam que minhas digitais apresentavam-se pouco claras, por conta de traços que as interrompiam, tornando-as inidentificáveis e portanto inaceitáveis para o datiloscopista. Nada contra a classe. Mas parece que são preparados somente para dizer sim ou não às nossas digitais e ponto final. Nunca lhes falaram sobre o mundo além das pontas dos dedos.
Tentei ir mais fundo na questão, argumentando que existem outros modos de identificar alguém, o DNA sendo o mais conhecido no mundo civilizado. Depois de três tentativas baldadas, convenci-me de que foi Kafka o fundador do Detran, porque toda vez que eu insistia em falar no assunto meus atendentes faziam cara de paisagem. Quem ainda se dava ao trabalho de responder alguma coisa, dizia vagamente que não, nunca tinha ouvido falar sobre esses métodos. E um deles chegou a argumentar, com um misto de espanto e complacência penalizada: “DNA só serve pra confirmar a paternidade, só.” Humildemente argumentei que até múmias da Antiguidade andavam sendo identificadas a partir de restos de antepassados, e que meus antepassados deviam estar em condições bem melhores. Mas o rapaz deve ter achado a proposta indecente; sacudiu a cabeça, escandalizado, e encerrou o assunto com um “aqui não fazemos esse tipo de coisa”.
“Devem ter recebido instruções nesse sentido”, concluí, recusando-me a acreditar na hipótese de incompetência ou pura e simples ignorância. Deve haver uma razão transcendental para que eles se apliquem com tal pertinácia a impedir que uma pessoa obviamente real, ali presente em carne, osso, roupa, voz e acessórios, fique privada da carteira plastificada que lhe garante um lugar no rol dos cidadãos deste país. Mesmo com aquela cara de idiota no retrato, não é justo que deva me conformar em ser para o resto da vida uma pária da sociedade.
Estou pensando em contratar um advogado, trocar meu voto por uma carteira de identidade vitalícia ou analisar o grau de corruptibilidade dos funcionários kafkodetranianos. Aceito sugestões.
Obs: Imagem enviada pela autora.