A FLEUMA BRITÂNICA
e
O MITO de
por
Ex-Diretor do INETI (Coimbra)
Escritor (horta.silva@sapo.pt)
Depois de duas semanas estivais, o frio e a chuva estão de volta, a pontos de não se saber ao certo se vivemos restos de um Inverno incaracterístico recheado de temperaturas acaloradas, ou se estamos perante a despedida antecipada de um qualquer Verão de S. Martinho perdido na escala do tempo. Quando toda a gente já andava de manga espanada, começou a nevar nos Pirinéus, no Cantábrico e na Serra da Estela, granizou no Minho, em Trás-os-Montes e na Beira, caíram trombas de água a sul do sistema Montejunto-Estrela, incluindo Alentejo, e adensaram-se os nevoeiros nas praias entre os Cabos Carvoeiro e S. Vicente que despediram as nortadas da costa portuguesa. Com algum alarido, conjectura-se sobre o desaparecimento das tradicionais estações do ano e sobre as grandes mudanças climáticas que vêm a caminho, o que traz, por arrojo, um desejo acrescido de espreitar pelo buraco do ozono. E, face a esta singularidade, dei comigo perdido em Lake District (Inglaterra) onde, em 1968, sob condições climatéricas adversas, fui ver umas quantas barragens em construção e contactar ao vivo com depósitos de “boulder clay”1 que incluíam matacões de rocha estriada, calhaus e areia, tudo aquilo e tudo isto envolto em argila e trazido de arrasto, desde a Escandinávia, pelas calotes de gelo que, durante as últimas grandes glaciações, abraçaram as ilhas britânicas.
Formávamos um grupo heterogéneo de estudantes de pós-graduação do Departamento de Engenharia Civil do Imperial College of Science and Technology (Universidade de Londres), onde pontuavam ingleses, irlandeses, canadianos, americanos, israelitas, indianos, italianos e o português que, despretensiosamente, vos escreve estas notas. Numa das noites, fomos até um “pub”, em Whitby, onde um trio formado por um rapaz e duas moças tocava e cantava música “folk”ao som de um violino e de duas violas, trio que se desmultiplicava em esforços para tentar aquecer um ambiente taciturno e introspectivo. Os nevoeiros da costa britânica são espessos e saem do mar dispostos a trepar as falésias e a deglutir os anfiteatros das povoações, casario a casario, cobrindo a paisagem remota e próxima com um denso manto sombrio. É uma forma de manter o crepúsculo ao longo do dia, deixando ver o que resta ao pé dos olhos que, volta e meia, aparece e desaparece sob a forma de silhuetas difusas e fantasmáticas. Alguns dos meus colegas, que sabiam que eu arranhava viola, armaram-me uma emboscada e, em pouco tempo, vi-me no meio do conjunto a ensaiar acordes musicais que nada tinham a ver com aquelas paragens. A noite foi alegre, o “pub” esgotou e os ingleses e demais gentes entoaram em coro o refrão “Canto o Fado”. Quando fui perguntar ao “barman” quanto tinha a pagar por aquilo que consumira, o homem entregou-me uma girafa de “export beer” e de mão bem estendida disse “God bless you”2. A noite acabou numa enchente de pasmar e, no meio da fleuma britânica dissolvida num harmonioso e amplo convívio, soube que um dos professores que nos acompanhava conhecia e admirava Coimbra. Segundo confessou, em redor de uma mesa imersa numa atmosfera de verdade, o surgimento de Coimbra aos olhos do viajante que desce pela antiga estrada de Lisboa (E. Nacional 1) é qualquer coisa que perdura na mente de quem gosta de deambular pelo mundo à procura do que é belo. E mais espantado fiquei quando acrescentou: «na terra natal do Horta da Silva, vi um nevoeiro a sair do rio que deglutia o anfiteatro da cidade um pouco à maneira do que vimos entre Robin Hood´s Bay e Whitby, mas não encontrei nenhum lobisomem...» figura que adorna, de um modo simbólico, “O Mito de Coimbra e do Mondego”, que se dilui entre episódios inesquecíveis da História de Portugal, dos quais não é possível alienar os amores de Pedro e de Inês, que foi rainha depois de morta, e o milagre das rosas que eclodiu do manto de Isabel de Aragão, sob os olhares circunspectos de el-rei D. Dinis.
Ao iniciar o romance “O Ambientalista, a Esfinge Egípcia e a Face Oculta da Verdade” lembro-me de ter recorrido a três citações relacionadas com o contexto da narrativa, entre as quais se encontra um pensamento do célebre filósofo e teólogo dinamarquês do séc. XIX, Soren Kierkegaard, que diz: «a vida pode ser entendida olhando para trás, mas só pode ser vivida olhando para a frente».
“O Mito de Coimbra e do Mondego”, com ou sem lobisomem, tem fama e foi tema que apaixonou grandes vultos das letras, alguns dos quais passaram por esta terra para levar, dela, não mais do que um pouco de saber, rebeldia e uma mão-cheia de ilusões estampada nos contornos da memória, ilusões que acabaram por fazer História. Porquê? Pela simples razão de essa mão-cheia de ilusões se ter antecipado ou seguido o conteúdo do pensamento de Kierkegaard, consoante os autores tivessem vivido antes ou depois deste insigne filósofo. Infelizmente, Coimbra parece cativa do passado por um enlace saudosista. Quem olha Coimbra e o Mondego de hoje não pode deixar de anuir que estamos perante cenários, sociedade e estado do conhecimento completamente diferentes dos tempos em que o mito coimbrão tomou corpo. Por isso, revisitá-lo, do ponto de vista literário, exige uma estrutura a condizer com a arquitectura arrojada das novas pontes, exige uma simbologia que se revê no dia-a-dia em que vivemos e exige um estilo que se projecte no futuro.
E por tudo isto um pouco, uma pergunta fica suspensa na perplexidade dos dias que passam: «quando é que a edilidade passa a entender a cultura olhando para trás e a implementar a vida cultural da cidade olhando para a frente?
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1 Sedimento de origem glaciar, formado por pedregulhos e cascalhos envoltos em argila.
2 Deus te abençoe.