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Pegou a lâmina de barbear do marido, encostou-a no pulso. Um pequeno corte, nos dois braços e, pronto, tudo resolvido com direito a necrológio, flores e lágrimas. Palavras seriam ditas. Mentiras soluçadas.
Sentiu, com o frio da lâmina sobre a pele, a indiferença, o desprezo, a falta de amor por si mesma. Fez pressão como se fosse cortar. Uma pequena incisão em sentido vertical, não haveria médico que desse jeito. Ouviu passos lá fora.
Alguém andava pela casa. Estremeceu só de pensar quem era. Fechou com chave a porta do banheiro. Olhou-se no espelho - irreconhecível. O que fora feito dos cabelos e da pele rosada e macia? Quando perdera o brilho dos olhos? Na sua frente, a alma exposta, maltratada, tatuada em rugas profundas, sobre o rosto murcho. Culpar a quem pelo próprio desamor.
Qual dos pulsos cortaria primeiro? Começaria pelo esquerdo. Imaginava o que se passaria – lamentações convencionais, frases de puro efeito – ah, se ela tivesse falado eu teria entendido. Falsidade, pura falsidade. Pensou nos espaços que deixaria - na mesa, na cama, lugares logo preenchidos ou disfarçados. Estava cansada de não ser vista, amada, não era bem aquela queixa do ninguém me ama ninguém me quer. Não, era uma história antiga muito antiga mesmo, história de abandono e solidão.
A lâmina era nova. A idéia antiga. Pensou no cordão umbilical, preso à única pessoa que a amara. Cortado dera-lhe passagem para a vida. Agora, a lâmina afiada, a levaria de volta. Alguém sentiria sua ausência? E por que se julgar tão importante se nem ao menos se amava?
Arranhou o pulso com a ponta da lâmina. Arrepiou-se com a dor, correu-lhe pelo corpo o veneno da palavra negada, do olhar indiferente de quem deixara de se amar, de quem se fizera de morta antes de morrer. Então, a ira explodiu, explodiu como uma força descomunal vinda do mais profundo do seu desgosto numa revolta sem controle. Em nome de que e de quem, o sacrifício? Nunca!
Passou creme no rosto, batom nos lábios, perfume no corpo.
Apagou com a maquilagem o rosto sofredor de todos os dias,
Vestiu uma roupa transada da filha, e, de pés descalços, macia e silenciosa, aproximou-se do marido que dormia no sofá. Segurou firme a lâmina afiada. Abaixou-se como se fosse beijá-lo. Nunca mais ele a olharia com desprezo e indiferença. Nunca mais.