Djanira Silva
Nasci assim, um pecado antes de ser. Prazer antes de ter. Garras cravadas na carne, sonho esfaqueado, sangue jorrando num corpo sem medo.
No jardim rosas e cravos, bogaris e açucenas, sementes nas confidências da entrega. A lembrança nos sonhos, a alma nas sombras, o silêncio na morte.
Jogos mágicos e segredos. Histórias invertidas não me enganam. Fecho os olhos porque não quero saber dessas flores que me cobrem os cabelos. Os abismos me esperam dentro de mim. As sombras me repetem copiam minhas formas, imitam-me os gestos, ameaçam-me com a vida. Penso que voltarei. Nunca mais sozinha. O mundo cresce, se espicha, mergulha no infinito.
As dores sobrevivem como as ondas de som repetidas na água, no ar, dentro da alma lá, bem lá, onde se esconde a imaginação.
Pela janela aberta alguma coisa escapa do amargo das minhas entranhas das sombras, das raízes.
Confundo-me com a luz, asas queimadas no chão de espera. Temo o escuro, as trevas que se movem, o meu sorriso que não posso ver.
O que não conheço me possui, subjuga-me na escravidão do silêncio.
Preciso de mim para poder voltar.
Então, brinco de ter virtudes, rezo e me arrependo e me perco nos braços, no corpo, na alma, quarta-feira de cinzas, cinzas dos prazeres, restos de mim, traços de uma alegria empoeirada.
Tenho medo de esquecer da criança que fui, dos campos que vi florir, das cores do arco-íris, do vestido branco, dos laços de fitas nos cabelos, nas sandálias leves e livres que me levavam pelas estradas apascentando a felicidade.
Saí da infância para aprender pecados.
Agora, tenho diante de mim a branca certeza dos meus cabelos, a cor desbotada dos retratos, uma saudade, uma agonia. A velhice me curou da adolescência.
Para viver preciso voltar pelas estradas que me construíram na paz dos caminhos. Paz que se renova, energia dos movimentos. Vieste a mim em movimentos, tomaste-me nos braços em movimento, fecundaste minh’alma, em movimento.
Toca o realejo, recomenda a vida. No movimento das horas passa o tempo, no movimento do tempo nós passamos e quando tudo cessa, tudo cessa: “morrer, dormir, talvez sonhar. Quem sabe?”
Obs: Texto retirado do livro da autora – A Morte Cega