Mario de França Miranda
Há palavras que evocam grande riqueza de significados e de imagens, que despertam sentimentos profundos, que provocam recordações, que nos libertam da banalidade cotidiana, que nos levam a progredir, que nos desinstalam da mediocridade, que nos estimulam a olhar a vida e a nós mesmos mais em profundidade. Fraternidade, justiça, paz, amor, mãe, partilha, comunhão, são alguns exemplos que nos ocorrem. Poderíamos acrescentar também o vocábulo NATAL.
Como palavras-fonte, de onde jorram continuamente múltiplas representações, não conseguimos defini-las com precisão. Certamente a poesia, a música, a pintura conseguem se aproximar mais de sua verdade, por nos possibilitarem leituras plurais, mais existenciais por termos que investir a nós mesmos e, portanto, mais ricas e abrangentes do que a camisa de força do conceito objetivo e impessoal. Assim estas linhas reconhecem de antemão seus próprios limites e pretendem apenas evocar um aspecto do tema.
De fato o evento que conhecemos como Natal abarca muitos sentidos. Não somente aponta para o nascimento de Jesus Cristo, mas co-envolve tudo o que se encontra com este acontecimento intimamente relacionado. A começar por toda a história desta criança, suas palavras e suas ações, suas alegrias e sofrimentos, sua morte prematura e sua ressurreição. Neste conjunto emerge a imagem de Deus revelada em Jesus Cristo, a esperança de uma vida sem fim, a ética evangélica para a convivência humana, o cuidado com os pobres, a responsabilidade na construção da história, numa palavra, o sentido da existência humana. Toda esta realidade está presente na expressão NATAL. Daí sua força simbólica e sua capacidade de despertar sentimentos.
Cada época pode se debruçar sobre o presépio e captar mensagens diversas deste evento, conforme suas próprias questões e angústias. A resposta só se desvela à luz da pergunta. No início deste terceiro milênio da era cristã temos uma consciência crescente de vivermos uma situação profundamente crítica e complexa. Os impasses da atual sociedade são inéditos na história da humanidade por afetarem todo o planeta.
Cada vez nos conscientizamos mais que o modelo econômico dominante caminha para sua autodestruição. Embalado no mito do progresso sem fim, dominado por uma racionalidade funcional que visa apenas ao lucro, prisioneiro de um individualismo cultural e de uma idolatria cega diante do mercado, semeia hoje tempestades indomáveis para o futuro. A produtividade crescente de bens industrializados, componente essencial para manter em funcionamento o atual modelo, se contrapõe à limitação dos recursos naturais e anuncia um desastre ecológico irremediável. Mais ainda. Ao depender da criação de novas necessidades, da contínua concorrência e da acumulação do lucro acaba por gerar uma vergonhosa concentração de riqueza, um agravamento das desigualdades sociais, um aumento no processo de exclusão e de marginalização.
Com tudo isto o grande perdedor vem a ser o próprio homem. Entregar os critérios de decisão ao lucro e à produtividade equivale a considerar os seres humanos como simples peças descartáveis da máquina econômica. Estes passam a ser avaliados pelo seu valor de troca. Tudo se torna mercadoria, a lógica do mercado se impõe como critério universal. E se o acesso aos bens produzidos se dá pelo trabalho remunerado, então o próprio modelo se encarrega de diminuir as ofertas de emprego, condenando grandes multidões à marginalidade e à miséria. Com o enfraquecimento político das nações e com a crise geral dos padrões éticos, a que instância apelar?
Talvez o leitor ache o quadro demasiado sombrio. E insista nas conquistas da modernidade: primado da razão, valorização da pessoa humana, progresso social efetivo pelas vitórias da ciência e da técnica, da industrialização e da democracia. Tudo isto é verdade. Mas se encontra hoje profundamente deformado aos olhos críticos de um observador inteligente. O brilho dos shoppings centers e a crescente parafernália tecnológica não conseguem esconder a multidão de desempregados ou de meninos de rua, bem como a escalada da violência, da permissividade e da droga em nossas cidades, a crise dolorosa da família e do matrimônio, o enriquecimento crescente de minorias em contraste com maiorias excluídas do bem estar social.
Se fôssemos perguntar pela razão última desta perigosa situação, poderíamos responder que o homem se tornou um componente secundário na atual sociedade. E neste contexto precisamente a festa de Natal ganha um sentido novo. Pois no fundo a cena do presépio, Deus na fragilidade e na pobreza de uma criança, Deus que se faz um de nós para nos salvar, revela seu infinito amor pelo ser humano. O Natal manifesta assim a dignidade impar de cada pessoa. Jamais poderá ela se tornar instrumento em vista de qualquer objetivo que seja.
Mais ainda. A fé cristã afirma que Deus a tal ponto assume a causa do homem que chega mesmo a se identificar com ele. “O que fizestes a um desses pequeninos foi a mim que o fizestes”. Atingir o ser humano é atingir o próprio Deus. Daí a importância histórica do cristianismo na concepção atual da pessoa, dos direitos humanos, da liberdade. Daí sua luta constante em favor do autêntico humanismo, que inclui a vocação última do homem para o Absoluto. Como vemos o Natal é uma festa menos inocente do que parece.