Maria Clara Lucchetti Bingemer,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio *
Em todas as partes do mundo cresce um movimento: o dos indignados. Saindo às ruas, ao espaço público, em protesto contra injustiças que decidiram não mais tolerar, os indignados protestam com palavras, gestos, atitudes. Pretendem com isso chamar a atenção da sociedade e, sobretudo, de seus dirigentes.
O que move esses grupos que enchem as ruas? O que move essas pessoas que não são bandidos, nem arruaceiros, mas sim cidadãos corretos, que trabalham e pagam seus impostos? Qual o motor de sua cólera, de sua indignação?
Indignação quer dizer cólera ou desprezo experimentado diante de uma indignidade, ou injustiça, afronta. É repulsa e revolta diante daquilo que fere valores básicos, direitos e princípios que regem a vida dos seres humanos.
Ela pode ser meramente uma defesa de interesses privados, domésticos e individuais. De coisas que dizem respeito exclusivamente à própria pessoa, à família ou ao círculo dos mais próximos. Ou ainda o círculo mais largo da empresa, do partido político, ou até da agremiação esportiva. Tudo aquilo que freia, desvia, prejudica os interesses do grupo ou do clã suscita indignação que pode resultar em ações legais, judiciais etc. Atingir os interesses do grupo suscita imediatamente a reação corporativa e indignada de seus membros.
Sem querer minimizar ou mesmo demonizar este tipo de indignação, é necessário constatar, no entanto, que ela toma a defesa de interesses particulares não universalizáveis. E pode inclusive tomar o aspecto de autodefesa de privilégios, como a defesa a qualquer preço ou custo de um estilo de vida confortável, um protesto contra propostas mais sociais, que beneficiem um leque mais amplo de pessoas e grupos. Assim também a indignação contra certas medidas de mais transparência pelo fato de que podem pôr a nu ou denunciar atitudes escusas de determinadas pessoas ou grupos a quem não interessa que a verdade venha à tona. O protesto gerado por esse tipo de indignação não visa então prioritariamente o estabelecimento de valores ou do bem comum.
A indignação que hoje vemos ganhar as ruas parece fundar-se, no entanto, sobre razões não tanto formais, e certamente mais radicais do que aquelas contra as regras da equidade em nível pessoal ou intragrupal. Trata-se de uma indignação propriamente ética, que se levanta em nome da proteção ou da defesa do ser mesmo das pessoas, de sua integridade física e moral.
Complexa e densa, essa indignação pode inclusive ir de encontro ao direito positivo e conduzir, em consequência, à resistência cidadã. Esse tipo de indignação se refere, então, a valores reconhecidos como fundamentais e não negociáveis, como, por exemplo, aqueles expressos na Declaração dos Direitos Humanos que, ainda que longe de ser perfeitos, representam uma conquista inalienável da humanidade sobre razões universais ou ao menos universalizáveis. A indignação ética apresenta características que ultrapassam as fronteiras dos interesses próprios, pessoais e corporativistas. E mais: não se fundam no negativo nem na exclusão de inimigos ou de quem quer que seja. Esses, ao contrário, são incluídos nos benefícios dos valores que os atos de indignação ética pretendem promover. E mesmo os tiranos comprovadamente sanguinários, quando vencidos no bojo de atos que se iniciaram com uma atitude de indignação ética, têm direito a um julgamento e a um procedimento judiciário com tudo que isso implica.
Parece-me que o que assistimos hoje em várias partes do mundo se encaixa neste segundo caso de indignação. Desde os protestos dos estudantes no Chile, exigindo mais verbas para educação; passando pelos espanhóis, que enfrentam 20% de desemprego, num processo de deterioração social que pode espalhar-se qual doença contagiosa por todo o continente europeu e por todo o mundo; até Nova York, onde o movimento “Occupy Wall Street” denuncia publicamente um sistema financeiro que sugou os recursos de muitas nações e gerações, e agora dá sinais de exaustão.
No Brasil, o movimento contra a corrupção ainda mostra números tímidos de adesões, se comparado com o que ocorre em outras latitudes. Entretanto, o mero fato de existir já é uma esperança. Perder a capacidade de indignar-se é o pior que pode acontecer a uma pessoa, pois a desumaniza e debilita naquilo que tem de mais nobre e mais fundamental: sua liberdade. Indignar-se pode ser o novo caminho que a humanidade encontra para gritar bem alto sua dignidade de seres humanos, feitos para a vida em plenitude.
* Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)