Ivone Gebara *
Toda a tradição da história do Cristianismo se desenvolveu, por um lado, em torno dos que quiseram manter um Cristianismo tecido da aliança com o Império Romano e, por outro, dos que quiseram romper com a estrutura hierárquica elitista. Para uns a verdade era pré-definida por Deus e justificava os poderes estabelecidos. Para outros a verdade era o encontro com o próximo na sua diversidade de rostos e culturas. Para uns era o dogma que precisava ser obedecido e defendido. Para outros eram os corpos feridos, caídos nas estradas da vida, famintos e sedentos de pão e de justiça que precisavam ressuscitar. Para uns a recompensa viria nos céus e para os outros a justiça deveria ser provada nos limites desta existência.
Tento delimitar os espaços de um e outro grupo para efeito de compreensão, embora todos saibam que no concreto da vida, muitas vezes as coisas são bem misturadas e bem pouco claras.
Guardando a distinção e as ressalvas, cada tendência entendia os gestos de Jesus e a herança cristã de uma maneira e em conseqüência se constituía em igreja – comunidade de fiéis. Sempre houve muitas igrejas e seguimos esta inspiração múltipla até os dias de hoje. Cada igreja e nela talvez cada pessoa entende e vive a tradição cristã de um jeito particular. São os mesmos homens e mulheres que constroem cidades, aram a terra, plantam e colhem, fazem comércio e fabricam sempre novas coisas. São eles, os mesmos que se organizam em igrejas ou dizem fazer parte de uma Igreja. São os mesmos que constroem impérios e financiam catedrais. Os mesmos que constroem leprosários e acolhem crianças abandonadas. E entre eles há os mesmos conflitos de interesses e de políticas e de compreensões do mundo. Entre eles há os Ananias e as Safiras, conhecidos personagens dos Atos dos Apóstolos, como há Marias e Pedros. Uns defendem Roma, outros Jerusalém, outros Antioquia e outros Genebra. Uns defendem o Templo e outros a casa. Tudo foi diferente no passado, mas o fundo conflitual é o mesmo no presente. A humanidade muda e é sempre a mesma. Por isso, muitas vezes quando usamos a expressão “nova igreja” é preciso sempre colocar uma interrogação no final da frase. É esta pontuação talvez insignificante, a única capaz de despertar em nós um senso crítico e uma volta à sempre velha condição humana. É ela que nos acorda criticamente para que reflitamos sobre o que queremos e o que podemos viver.
Quando dizemos “igreja nova” ou “nova forma de igreja” é preciso sempre perguntar: é nova em relação a que? Que novidade é apresentada? Em que esta novidade afeta a vida? E vida de quem?
Cada reformador ou cada líder de algum novo movimento religioso dentro do Cristianismo sempre pretendeu a novidade. Esta novidade significou e significa até hoje a crença de que é possível restaurarmos a mais pura tradição do Evangelho de Jesus. Cada um pretende ter a verdade ou a mais pura versão do Cristianismo. Cada um pretende ser o mais próximo discípulo ou o mais fiel imitador do Cristo. Ninguém é isento desta espécie de competição entre os “bons”. Sim os “bons” competem entre si e cada um quer o primeiro lugar ou quer se sentar à direita ou à esquerda de Jesus. Mas a concorrência parece inútil, segundo certa leitura da tradição de Jesus. Ele parece não admitir comparações e competições. Para Jesus não importava em nome de quem se fazia o bem. E, a novidade para Jesus estava inscrita nos gestos e acontecimentos simples da vida. Nem Marta e nem Maria, nem os filhos de Zebedeu, nem Pedro e nem Paulo, nem Lutero e nem o papa foram realmente “a novidade”. Todos têm a marca de Caím e a docilidade de Abel. Todos podem ser fratricidas e misericordiosos. Todos podem jogar pedras uns nos outros ou podem defender os agredidos e caluniados. Todos podem conviver com Jesus em fraterna amizade e entregá-lo aos algozes do Templo e do Império. Estranhamente continuamos na Torre de Babel, apesar de termos anunciado a vinda do Espírito do Amor no meio de nós.
Uns clamam pelo Deus altíssimo, outros acolhem o silencio interior da falta de respostas. Para uns, os missionários televisivos fazem o bem curando e expulsando demônios em nome de Jesus. Tornaram-se a nova Igreja de Jesus, com multidões esperando por milagres e acreditando num poder que vem do alto. Para outros, os missionários alienam o povo e impedem o avanço das lutas sociais por justiça. Tudo depende do ponto de vista a partir do qual analisamos a história e do lugar onde nos situamos. Mas, apesar disso, é preciso admitir que os fatos hoje são diferentes daqueles do passado; entretanto, a mesma música de nossa finitude se faz ouvir, nos diferentes ritmos e cadências.
Por isso vale retirarmo-nos para nosso quarto e, fechando a porta devagarzinho sem fazer ruído algum, perguntar-nos em silêncio: o que estamos de fato buscando com a ânsia de viver novidades?
Não estaríamos cansados do “velho homem” ou da “velha mulher” que somos ou de nossa imaginação, sempre buscando ideais inatingíveis, sempre sonhando com mundos impossíveis? Não estaríamos cansados da mesmice de nossas teorias, dos aparentes cardápios novos, do dinheiro que rola em tudo, fazendo às vezes de maná celeste? Não estaríamos necessitados de mudar o tempo dos relógios do coração, restabelecer jeitos simples de viver, escutar as pessoas, degustar de suas falas e diferenças? Não estaríamos necessitados de descobrir de outro jeito os rostos de nossos amigos e vizinhos?
Um dia na calçada de minha casa duas mulheres conversavam. Eu estava sentada na varandinha tentando ler e ao mesmo tempo escutar a animada conversa.
- Dona Isabel, imagine que roubaram a farmácia da esquina? Levaram todo o dinheiro da semana!
- Dona Maria respondeu: “Eu quero é novidade!”.
Então Dona Isabel lhe disse: “A novidade é que minha primeira neta nasceu hoje cedo”.
“Ah! Isto sim é novidade boa”, disse-lhe Dona Maria, abrindo-se para um abraço afetuoso.
E com a criança o mundo começou de novo, como dizem os poetas e os místicos... E com ela recomeçam as novidades de nossas lutas e esperanças.
* Filósofa e teóloga, feminista e escritora