Maria Inez do Espírito Santo
Em “Linha de Passe” as pessoas aparecem com suas cores mais cinzentas, manchadas por camadas superficiais de descontinuidade. Tirando raros momentos em que ensaiam um tentativa de brincadeira (um bate-bola entre os irmãos, uma festinha de aniversário, por exemplo) o filme retrata crianças, jovens e adultos ressentidos e irresponsáveis e delirantes, sem dar prosseguimento suficiente a nenhuma cena, a ponto de não desenvolver suficientemente a apresentação de um perfil sequer, de forma a permitir surgir alguma empatia por parte da platéia.
Não há nenhum momento de alegria espontânea, nem mesmo quando o que aparece é torcida de futebol. Da mesma forma, não há relação verdadeira entre os personagens do filme. Eles convivem, dividindo só espaços, comida e insatisfação. Não dialogam, não buscam soluções em conjunto, como se estivessem mesmo em campos separados por uma linha divisória intransponível.
Isso me faz lembrar de uma criança, um paciente meu, que me ensinou, com suas descobertas nas brincadeiras na ludoterapia, com a caixa de areia, a diferença entre guerra e esporte. Durante meses ele construiu guerreiros e estabeleceu lutas infindas. Aos poucos, após exercitar exaustivamente a tentativa de equilibrar as forças entre os opostos, ele foi transformando os lutadores em jogadores de futebol. Aí ele disse que nos esportes os campos estavam previamente marcados, para serem respeitado; havia regras e sempre se podia recomeçar, ganhando ou perdendo; ao final da disputa os adversários não eram inimigos. Na guerra, ele me alertou, vale tudo.
Será, então, que é só o nome do filme que está errado? Ao invés de “Linha de Passe” o filme deveria se chamar “Cabo de Guerra” , como aquela brincadeira em que uma corda é puxada dos dois lados, até que um deles consiga derrubar o adversário. Seria mais apropriado esse nome?
Mas Passe é também o nome dado pelos espíritas a um processo de “limpeza” de aura, nos fazendo voltar, assim, à idéia de atravessamento de dois campos – nesse caso o físico e o espiritual. E o espiritual, no filme aparece também, apenas pelo aspecto do fanatismo e do desencanto.
Tem mais ainda: os lacanianos falam de passe quando se trata da autorização de clinicar, que o próprio analista se dá, ao se julgar apto, num determinado ponto de seu processo de formação. E clinicar é algo que exige um delicado e extremo cuidado com o campo do Outro. Um estar-com que não invade, nem se permite invadir, mas que se disponibiliza à mutualidade. Exercício da mais verdadeira convivência; de experiência compartilhada e reciprocidade, nos ensinou Winnicott.
Trazendo tudo isso para o filme, lembro de seu final e aí mais me decepciona o trabalho desses cineastas. Os protagonistas terminam todos à deriva, em vitórias falsas e temporárias, em derrotas terríveis, em solidões, em abandonos, em perdição, como se não houvesse para a “tríade pobreza-família-busca dos sonhos”, de que fala a crítica elogiosa, nenhuma esperança de verdadeira travessia para um estar melhor no mundo.
A mim, me parece que seria mais autêntico se nossos cineastas ousassem pensar em suas próprias “Linhas de Passe”, avaliando se a tal desesperança não está muito mais na “elite” cultural e social, que representam de fato, que no povo das periferias urbanas, que conhecem de camarote, ou por trás das câmeras.
Enfim, o que sei é que não aceito esse passe. Deixo essa bola no chão.
E, assim, considero libertado o elefante de sua sina compulsória e infame de falso beijador.