D. Demétrio Valentini *
No dia 14 de setembro a Igreja celebra a “exaltação da Santa Cruz”. A festa recorda a época em que a fé cristã, tornada religião livre, e aos poucos hegemônica na Europa, propiciou aos cristãos cunharem símbolos de sua identidade, que favorecessem sua afirmação social e cultural.
O contexto histórico da fragmentação do império romano, favoreceu a constituição de uma nova entidade, com as suas diversas dimensões de ordem religiosa, cultural, social e econômica.
No âmbito do antigo império, foi emergindo a Igreja. Ela expressava o grande número de pessoas que passaram a fazer da nova fé religiosa, um elo de vinculação social, com suas práticas e seus símbolos.
Entre estes símbolos, sobressaiu a cruz. Pela maneira como ela evocava acontecimentos fundantes da nova fé, a cruz se tornou o símbolo mais eloqüente, com a vantagem de ser ao mesmo tempo simples na sua configuração, e profundo na evocação dos fatos centrais relativos a Cristo.
Foi então que cresceu a curiosidade por encontrar a cruz autêntica usada na execução de Cristo no calvário. Assim, o interesse pelo símbolo, despertou o interesse pelo objeto.
Nos inícios da Igreja primitiva não se encontra nenhum rastro deste interesse pelo objeto concreto da cruz de Cristo. Ao contrário, os fatos testemunham o grande impacto causado pela presença viva do Ressuscitado. Se ele estava vivo, pouco interessavam os instrumentos de sua morte. Não se comprova nenhum interesse em identificar ou guardar objetos que tinham estado em relação pessoal com Cristo. Ninguém se preocupava em saber onde teria ido parar o manto de Cristo, onde estaria o cálice usado por ele na última ceia, e assim por diante.
Só depois de estruturada como entidade, a Igreja passou a cultivar os símbolos de sua identidade. Foi então que emergiu a importância da cruz, como portadora de uma simbologia muito profunda, e bem caracterizada.
Todo símbolo recebe o seu significado do relacionamento concreto com os fatos que o constituíram como sinal. Cultivando esta vinculação, se aprofunda o significado do símbolo. Quanto mais, por exemplo, se relaciona a cruz com o testemunho de amor que Cristo expressou por ela, mais a cruz se torna símbolo de sua mensagem.
Mas, por contraste, quanto mais se vincula um sinal que já tinha o seu significado próprio, com contextos contrários a este significado, o símbolo inverte sua mensagem no novo contexto associado a ele.
Foi o que aconteceu com a cruz. Usada na morte de Cristo, passou por sua primeira grande metamorfose simbólica, deixando de ser sinal de condenação, para se tornar, para os cristãos, sinal de salvação.
Mas infelizmente, os cristãos usaram a cruz como símbolo das “cruzadas” contra os povos que habitavam a antiga “terra santa”. De tal modo que, para esses povos, até hoje a cruz é maldita, pois evoca os equívocos cometidos nestes episódios históricos.
Tanto que os cristãos precisam agora relativizar o uso da cruz no seu relacionamento com os muçulmanos.
Até entre os próprios cristãos, o uso da cruz não é unânime. Viajando pelo interior dos Estados Unidos, dá para distinguir claramente a diferença de cemitérios. Onde os túmulos são encimados pela cruz, o cemitério é católico. Onde os túmulos são desprovidos de cruz, o cemitério é protestante.
Parece que os cemitérios acabaram entrando na conversa de hoje, para dizer que os desentendimentos humanos são quase fatais. Até nossas bandeiras podem se tornar símbolos equivocados, se não soubermos distinguir, afinal de contas, entre o significante e o significado.
A propósito, o sábio provérbio latino nos adverte: “Cave a signatis!”. Isto é, cuidado com os marcados por símbolos!