PARTE I: A SANTA EUCARISTIA
Dom Sebastião Armando Gameleira Soares *
O Bispo Diocesano da Diocese Anglicana do Recife, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Dom Sebastião Armando Gameleira Soares, escreveu recentemente uma nova carta pastoral, direcionada ao clero e aos ministros pastorais auxiliares, tratando de diversos temas, onde os principais são o sacramento do Batismo e o rito sacramental do Santo Matrimônio. Segue carta pastoral na íntegra.
EXORTAÇÃO PASTORAL AO CLERO E AO MINISTÉRIO PASTORAL AUXILIAR SOBRE O SANTO BATISMO E O SANTO MATRIMÔNIO
Estimados irmãos e irmãs em Cristo,
Saudação de Alegria e Paz no Senhor
INTRODUÇÃO: A SANTA EUCARISTIA
Há mais de um ano enviei-lhes exortação pastoral sobre a Santa Eucaristia, com atenção especial às funções da Ordem Diaconal e do Ministério Pastoral Auxiliar na administração da Santa Comunhão. Conforme a Teologia da Igreja e seus Cânones, é diferente a maneira de presidir o culto público, quando se trata de presbíteros ou presbíteras e quando se trata de diáconos ou diáconas, ministros ou ministras pastorais auxiliares. Isso deve ser observado rigorosamente.
Na verdade, toda a vida deve ser ato de perene adoração. Estamos sempre na presença de Deus. Somos um com Cristo, Filho de Deus, por ser membros de Seu próprio Corpo (cf. Rm 12; 1Cor 12). O Espírito Santo foi enviado aos nossos corações (cf. Gl 4, 6), em nós habita como novo princípio de vida (cf. Jo 3, 5-8), somos templo do Espírito, coletivamente (cf. 1Cor 3, 16-17) e pessoalmente (cf. 1Cor 6, 19-20). Esse mistério, da participação na própria vida do Deus Triúno, é a dimensão mais profunda (secreta) de nosso ser humano.
Por isso, como bem o sabemos, o culto é, antes de tudo, o exercício de nossa vida de cada dia em Deus, com Deus e para Deus: “Exorto-vos (…) a que ofereçais vossos corpos como sacrifico vivo, santo e agradável a Deus, este é o vosso culto, como deve ser (“racional”). E não vos conformeis (adaptar-se à forma) com o sistema deste mundo, mas transformai-vos profundamente pela renovação de vossos sentimentos e pensamentos, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito” (Rm 12, 1-2). Toda a criação e particularmente nós somos feitura Sua para Sua glória (cf. Ef 1, 3-14). A adoração, o culto, é antes de tudo nossa vida permanentemente consagrada. É o que vemos com clareza na Bíblia, de maneira especial, nas palavras dos profetas. Baste conferir Amós (cf. 5, 21-27), Oséias (cf. 6, 4-6), Miquéias (cf. 6, 6-8), Isaías (cf. 1, 10-20).
Jesus nos deixa claro Seu ensinamento ao retomar os dois mandamentos maiores, quando os põe acima “de todos os holocaustos e de todos os sacrifícios” (Mc 12, 28-34). Magistralmente nos diz que o gesto litúrgico por excelência é curvar-se até o chão para apanhar caídos pelo caminho, particularmente quando se trata de “estranhos” e adversários. Lição que nos dá na admirável parábola do Samaritano (cf. Lc 10, 29-37). O Apóstolo resume tudo ao dizer-nos na Epístola aos Gálatas: “Pois toda a Lei está contida numa só palavra: Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5, 14).
O ato de culto, como aliás toda a vida da Igreja, diria o famoso teólogo anglicano do século XIX Frederico Maurice, é “anámnesis”, “memorial”, é trazer à tona, tornar manifesto o que já está presente, mas se esconde nas esferas profundas de nosso quotidiano no mundo. Há alguns anos, o Sínodo Provincial chamava a Igreja a deixar-se guiar por três palavras-chave: Celebrar, Transformar e Servir. Celebrar é manifestar a glória de Deus. Mas isso não se faz primeiramente com palavras de lábios e com gestos religiosos. Para a Bíblia, a glória de Deus se revela por Suas ações na criação e na história. Por isso é a realidade criada que, por sua integridade e vida, “canta” a glória de Deus (cf. Sl 19, 2-7). Santo Irineu, no século II, expressou-o de forma lapidar: “Gloria Dei, vivens homo” – “a glória de Deus é o ser humano em plena vida”. E o santo bispo mártir de El Salvador, Oscar Romero, o traduziu para nosso contexto: “A glória de Deus é o pobre em plena vida”, é o pobre levantado do abatimento e de pé. Daí, a maneira autêntica de celebrar a glória de Deus é ser criaturas transformadas que lutam pela transformação de seu ambiente na sociedade, “nossos corpos como sacrifício vivo” (cf. Rm 12, 1-2). O caminho, o método para transformar é servir.
A dimensão religiosa na Igreja é “sacramental”, isto é, é sinal visível de uma realidade que por si mesma é invisível, a realidade de nossa vida, pessoal e coletiva, quotidiana e pública em Deus. Sacramento é “símbolo” (“sýmbolos” em grego quer dizer o que une) a saber, sinal que nos conecta, nos une com a realidade significada. Como acontece com o amor, só o percebemos por gestos que o fazem visível. Adorar de fato é servir. Toda a Liturgia ritual da Igreja só tem sentido na medida em que é expressão celebrativa de uma vida dedicada em amoroso serviço e enquanto é profecia transformadora do que queremos ser em nosso quotidiano no mundo: “Vamos servir o Senhor com alegria, no poder do Espírito Santo. Aleluia!” É assim que nos despedimos cada domingo. Quando terminamos o culto, é que recomeçamos o “cultivo” da lavoura do Reino: “Para que trabalhemos na transformação dos reinos deste mundo no Reino de nosso Senhor Jesus Cristo” (LOC, Or. Eucar. “A”, pg 83). Cultuar e cultivar se interpenetram e vão formando em nós a “cultura” da adoração pela qual ação e culto se fazem práxis em nossa vida, dando, assim, à Liturgia seu verdadeiro sentido de “obra do povo e em favor do povo”. A Liturgia tem de ser sempre celebração, profecia e educação de nossa mentalidade para transformar sempre mais os valores que nos guiam na vida prática: “transformai-vos profundamente pela renovação de vossos sentimentos e pensamentos” (Rm 12, 2).
É importante que, na celebração da Liturgia, o povo participe intensamente e não apenas cante, confirme a iniciativa do clero com os responsos e o “amém”, haja distribuição de funções e perceba claramente o porquê da ordem do culto e assim experimente o “crescendo” que a mente da Igreja intenciona: preparação, confissão, louvor, oração (a “coleta do dia”), leituras, palavra de Jesus, atualização da mensagem da Bíblia… tudo isso deve conduzir para o ápice que é a Ceia do Senhor. Renovamos a oferta de nossas vidas (ofertório)para acolher o gesto supremo de Jesus que nos entrega a Sua própria vida (memorial da Ceia). Tudo o que vem de nós (confissão de pecados, louvor, oração, meditação da Palavra, oferta do que somos e do que temos) é só preparação para contemplar e sentir profundamente o que Deus é e faz por nós. Por isso, conforme o Livro de Oração Comum, “a Santa Eucaristia é o ato central da adoração no Dia do Senhor e noutras Festas Maiores” (LOC, Normas para o Culto da Igreja). Isto, o povo deve percebê-lo claramente em nosso modo de celebrar e conduzir o culto. Não deve ter a impressão de que o momento da Ceia seja apenas de “conclusão” ou, o que seria pior, “apêndice”. Não quer dizer que o momento da Ceia deva ser necessariamente mais longo que os demais, mas tem de ser intenso e destacado o suficiente para parecer realmente o ápice da celebração. O memorial da obra de Jesus, sua morte e ressurreição (“consagração”), a invocação do Espírito Santo (epiclese) e a exaltação dos feitos de Deus (prefácio e oração de louvor como se pode ver no LOC pg. 63, 77, 83, 88) nos revelam que celebramos a Graça (cf. Jo 3, 16), não ficamos a girar de maneira narcisista em torno de nossas próprias obras ou emoções (louvores, orações, meditação, ofertas).
Naquele documento, lembrava ainda o zelo e cuidado que devemos ter com as coisas e os atos da Liturgia, a começar da devida preparação do roteiro do culto, incluindo os cânticos de acordo com o tema bíblico, a respectiva parte do culto e a quadra litúrgica; do jeito de nos apresentar (maneira de vestir, de calçar… é diferente vestir-se à esportiva ou para um baile e vestir-se com “roupa-de-ver-a-Deus”), e como devemos escolher o melhor para o serviço do Senhor (o vinho, por exemplo, e a boa preparação da mesa). Liturgia é festa de família para o Senhor. O modo como nos apresentamos e conduzimos a celebração, e como cuidamos das coisas da igreja, a começar dos elementos consagrados, tudo isto é particularmente educativo para o povo cristão. Ajudar o povo a educar-se é tarefa precípua de nosso ministério. É ainda importante observar as funções de cada membro da Igreja e de cada Ordem, de acordo com a Teologia e os Cânones da Igreja.
Agora, cumpro outro desejo, escrever-lhes mais uma exortação pastoral, desta vez sobre o Santo Batismo e o Santo Matrimônio. O primeiro, o Sacramento fundamental da Iniciação Cristã. O segundo, chamado de “sacramento menor” ou “rito sacramental”, expressa na Igreja o maravilhoso mistério do amor de Deus pela humanidade, revelado em Cristo (cf. Ef 5, 21-33), mediante o sinal sensível do amor humano, “faísca divina” (Ct 8, 6).
(continua)
* Bispo da Diocese Anglicana do Recife – DAR
OBS: A Parte II – O SANTO BATISMO será postada na próxima semana.
A Carta Pastoral foi escrita em 15.08.2009.