Marcelo Barros(*)
As comunidades católicas consagram setembro como mês bíblico e o próximo domingo é considerado o “dia da Bíblia”. Na América Latina, a conseqüência mais positiva da renovação da Igreja, suscitada pelo Concílio Vaticano II, foi dar às pessoas mais simples acesso à Bíblia e a alegria de, nela, descobrir uma palavra divina para animar e fortalecer a caminhada da vida.
No passado, às vezes, a Bíblia provocava medo. Os impérios coloniais se serviram da Bíblia para legitimar suas ambições. Até recentemente, ao tomarem o poder, ditadores faziam juramento com a mão sobre a Bíblia. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, nos EUA, o presidente Bush aparecia na televisão com a Bíblia nas mãos e, em nome de Deus, conclamava o povo norte-americano a invadir países da Ásia. Diante disso, movimentos e grupos, comprometidos com a justiça e a libertação, chegaram a considerar a Bíblia um instrumento de violência e opressão e, por isso, rejeitá-la. Entretanto, a maioria dos grupos populares na América Latina não aceitou isso. Ao contrário, as comunidades passaram a ler a Bíblia e ligá-la à vida e ao caminho dos pobres. Em vários países do continente, homens e mulheres cristãos, animados pela palavra de Deus, participam ativamente da caminhada pela justiça e libertação.
Já nos anos 70, nos círculos bíblicos que animava por todo o Brasil, frei Carlos Mesters propunha ler a Bíblia não como um conjunto de textos isolados, nem como soma de citações para provar teses. Ele propunha ler a Bíblia, descobrindo em todas as suas páginas uma continuidade. De livro em livro, a Bíblia contém um fio norteador que nos orienta sobre qual é o projeto de Deus para nós e para o mundo. Em cada um de seus livros, podemos descobrir uma revelação progressiva desse projeto divino. O exegeta Francisco Orofino compara os textos bíblicos com fotografias tomadas em trechos de uma estrada do interior. A estrada têm muitas curvas, subidas e descidas. Alguém que se fixar apenas em uma foto pode pensar: “essa estrada vai para lá”, ou “ela é uma descida” e, assim, se equivocar. Para conhecer a estrada, precisamos saber de onde ela parte e para onde nos leva. As curvas e rodeios fazem parte do itinerário. Na parte mais antiga da Bíblia que, hoje, por respeito aos irmãos e irmãs do Judaísmo, preferimos chamar de “primeiro testamento”, o projeto divino é denominado de “aliança” que Deus faz com o seu povo. É um acordo, baseado em uma lei, que visa assegurar a justiça e o direito para todos, como condição de intimidade com Deus. No Novo Testamento, parte escrita pelas primeiras comunidades cristãs, a mesma realidade é chamada por Jesus de “reino ou reinado de Deus” e em outros textos, simplesmente de vida nova ou plenitude de vida.
Há muitos textos na Bíblia que parecem legitimar a violência, a intolerância e até as guerras. Essas realidades faziam parte da cultura do povo, como até hoje, constatamos na sociedade. Deus vai educando o seu povo para uma forma nova de viver e compreender a vida. Para nós, cristãos, Jesus é o cume dessa revelação. Ao se confrontar com a violência do mundo, sua reação foi de amor extremo por todos. Se alguém tinha de ser vítima daquele mundo violento, que esse alguém fosse ele mesmo. Ele não queria morrer e nem Deus queria que ele morresse, mas ele assumiu a morte por solidariedade aos que são vítimas da violência humana e para que, a partir de sua doação, todas as pessoas pudessem viver plenamente, tendo em si a própria vida divina, dada pelo Espírito.
Ao olharmos a história da humanidade, podemos pensar que Jesus fracassou. O mundo continua, cada vez, mais violento e cruel. A isso, o saudoso padre José Comblin respondia: “Isso mudará quando começarmos a viver a proposta de Jesus que, de fato, até aqui, nunca foi realmente experimentada”. Hoje, para quem aceita ler a Bíblia com olhos novos, esse é o desafio. Essa é a missão. Como diz a 2a carta de Pedro: “nesse caminho, fazemos bem em confiar na palavra dos profetas, (a Bíblia). Ela é como uma lâmpada que brilha em um lugar escuro, até que o dia clareie e o astro da manhã brilhe em nossos corações” (2 Pd 1, 19).
(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.