domingo, 24 de julho de 2011

VIDA À VISTA, MORTE A PRAZO


Djanira Silva


          A mulher parecia dormir. O médico se aproximou. Olhando-lhe o rosto descarnado e pálido, pensou no egoísmo de se manter viva, uma pessoa que já não possuía condições para sobreviver. Sabia que naqueles casos, além da idade, o mal estava avançado e nada havia que se pudesse fazer para alterar o quadro.
          Há pouco estivera no berçário onde a vida começava. E agora, na enfermaria onde algumas terminavam.
          Ainda não chegara ao estágio a que chegam muitos médicos, o da insensibilidade diante da dor alheia. Sofria vendo sofrer, principalmente os idosos. As crianças, ele sabia trazê-las à vida. Os velhos, não sabia como afasta-los da morte.
         A mulher abriu os olhos. No olhar quase apagado, havia mais do que uma dor, um pedido de socorro. Quando falou, a voz saiu tão clara e precisa que nem parecia vir de um corpo agonizante.
          - Doutor, quero fazer-lhe um pedido. O senhor sabe que me resta pouco tempo e que a medicina nada mais pode fazer por mim. De que adiantaria o que me resta? Na minha idade, mesmo a gente andando e respirando, com saúde ou não, metade já está morta há muito tempo. O que vou lhe pedir, sei que é errado, mas, depois de ouvir minhas palavras há de me dar razão. Doutor, peço-lhe, ajude-me a ter um fim digno, sem tanto sofrimento. Sabe de que estou falando, e o senhor sabe como faze-lo. – Infelizmente não posso atende-la, a senhora está me pedindo que cometa um crime.
          - A vida é mesmo muito engraçada, doutor. Passei toda a minha vida sendo morta aos poucos e ninguém jamais se deu conta de que isto era crime.
         - Por favor, não se esforce, respire, tenha calma.
           Preciso falar para que possa entender minhas razões. Tive e criei seis filhos. Tudo quanto fiz por eles, acreditei ser o melhor. Esqueci de mim. Comecei a morrer quando fui descobrindo os erros que cometi. Mas, é como diz o velho ditado “de boas intenções o caminho do inferno está cheio”.
           Pediu um pouco d’água. O médico sentou-se numa cadeira perto da cama e aproximou-lhe o copo dos lábios. Ela bebeu com dificuldade.
           - Meu marido me deixou com os filhos ainda pequenos. Assumi tudo sozinha. Ai, comecei a morrer. Não podia trabalhar fora de casa, não tinha quem tomasse conta deles. Lavava, passava e à noite, morrendo de cansaço, ainda costurava. Não me sobrava tempo para dar atenção aos meus filhos.
           Descanse, um pouco senhora. – Arrumou os travesseiros, deixando-lhe a cabeça um pouco levantada.
           - Deixe-me continuar. O senhor já viu com quanto sacrifício criei meus filhos. O mais velho, com apenas dezoito anos, começou a beber. Chegava em casa todas as noites, embriagado, mal conseguindo se manter de pé. Tratava mal a mim e aos irmãos. Aquilo era um martírio. Minha alma parecia se desintegrar e mais uma parte ia morrendo.
           O outro, adolescente ainda, começou a andar com uma turma de desocupados, pixadores, drogados. Foi preso e apareceu morto num matagal. E eu que não havia conseguido orientar meus filhos, continuei a morrer a cada dia que passava.
            - Minha filha teve um destino semelhante ao meu. Todos estes sofrimentos ficaram dentro de mim, apodrecendo-me a alma. Por isto tudo quanto acabo de lhe contar é que lhe peço: ajude-me.
           - Não posso ajuda-la. Já disse, nem a lei, nem a minha consciência me permitem tomar tal decisão.
           A mulher ganhou forças. Como se uma energia estranha a impulsionasse, falou de um só fôlego:

- É interessante, existem leis para tudo, até para impedir que se mate nada, pois eu hoje, doutor, sou pouco mais do que nada, estou quase toda morta. Diga-me uma coisa, não acha que deveria existir uma lei que proibisse as pessoas de matarem a alma umas das outras? Se o senhor fizer o que lhe peço, não estará destruindo grande coisa, porque tudo quando realmente prestava em mim, morreu há muito tempo.

          O médico levantou-se, abriu a maleta, pegou uma seringa, garroteou o braço da mulher.
           Antes de sair, fechou-lhe os olhos.


Obs: Texto retirado do livro da autora – A Maldição do Serviço Doméstico e outras Maldições.