Tassos Lycurgo ..
Córneas, simples pedaços de escleróticas, poderiam dar grandes escritoras. Além de tal assertiva, não hei aqui de considerar as suas possibilidades literárias, mas sim as suas experiência e maturidade, que - somadas todas -, representam o combustível indispensável à narração das tragédias dos homens. Mas, por que as córneas?! É que nelas hão de coexistir registrados todos as fatos do mundo - bons e maus -, que, inadvertidamente, traspassam-nas para terem na retina toda a sua miséria impressa. E, por fim, em tal situação, limpo e cru, estaria o maior dos fatos: a imagem do humano, indizível, inenarrável, inexprimível como ela o é.
Mas, aqui, no âmbito do texto - de ficção? -, no qual escritores maculam o papel alvo, inda resta a tentativa de outro projeto: a descrição pelas palavras. Tende vós, pois, possuidores de boas vistas, a história que haverá, em certo sentido, de ser narrada pela perspectiva de uma membrana, e que, por certo, tê-la-á como objeto do que se conta. Sabei, portanto, que é a córnea do Sr. * a protagonista do que se relata e aquela por cuja perspectiva se relatará a história. Ela, que superou o designo da morte - triste destino do resto do corpo - e preferiu perambular no globo ocular de um estranho. Ela, simples aglomerado transparente e fibroso, que foi de um homem, já defunto, e que foi a outro, quase cego.
À frente disso, nada obstante, há o enredo, que de logo deve ser enfrentado. Ei-lo, sem maiores delongas: era sexta de tardinha; chovia com um quê de preguiça, quando o Sr.* de 22 ou 23 anos, de pele bem escura, embora a negridão da própria história superasse a da cútis, erguia o braço, modelado pelos exercícios musculares da necessidade, para levantar o caixão de um amigo. Era o enterro do fulano... Sim, fulano, pois não me ocorreu de saber o seu nome, mas, quanto à sua morte, digo apenas que lá, fatalmente, seu corpo jazia.
A fatalidade que se expressava, contudo, não era significativa. Pois, a exemplo do Sr. *, o fulano havia sido no transcorrer da vida um desses que costumamos cá chamá-los de marginais, exatamente os que, em última instância, não bem sabemos à margem de que realmente estão. Da lei, por certo - diriam uns tantos -,mas também de nossas oportunidades. À parte isso, fato é que, para tais estirpes, diziam outros tantos, aquele era o destino do qual não podiam fugir. Morrera e pronto, não havia maiores rumores de revoltas ou choros, já que fora sempre um forte candidato ao projeto maior da tragédia humana: o trespasse de seu corpo de cima para baixo da terra.
Envolvido em tal raciocínio determinista é que o enterro continuava normalmente. Quando já estava o caixão perto da bem preparada cova, contudo, ouviram-se uns estampidos característicos. O Sr.* bem os reconheceu e, ou de fato ou de má sorte, vieram, compenetrados e decididos, quatro projéteis na direção do féretro. Embora parecessem no desespero uns sete ou oito, contavam-se os tiros pelos barulhos que seguiram. Eram como os sons dos quatro sinos, que formam o antigo carrilhão. Um dos tiros, no desespero de todas as paradoxalidades, matou novamente o morto, que, se pudesse, esboçaria um riso, denunciador de superior imunidade; o outro, foi à terra, que o recebeu sem quaisquer senões; o terceiro e o quarto, respectivamente, encontraram no Sr.* um pescoço e um tórax, ambos desprotegidos.
Enquanto o atirador fugia, incólume, e a multidão, horrorizada, gritava como ovelhas que correm assustadas, o Sr.* não escutou nada e parecia estar absolutamente isolado de todo o resto do planeta. Tudo, para ele, resumiu-se em um instante que era mais pequeno que grande, mais diminuto que grandioso, embora parecesse o contrário. Por fim, o Sr.* fez uma expressão reflexiva e, como que em movimentos lentos e ensaiados, passou a mão no pescoço, que não hesitou em pintar do vermelho mais rubro que se pode imaginar tudo o que se encontrava ao alcance daquela tinta medonha e estranha. Um pouco mais - dez ou onze segundos depois e a expressão mudou no baleado.
Seus músculos não mais lhe obedeciam a vontade do comando. As pernas, depois os braços, na ordem do peso que sustentavam, faleciam-se gradativamente, até que, em angústia, como um homem livre ao qual fosse atribuída a pena da tetraplegia, o Sr.* soltou um desses gritos abafados na própria garganta: - "Socorro!"; o berro lhe foi fraco... O corpo caiu, a vista que já começara a escurecer, deu sinais de última utilidade... Ah, em tal hora foi que se deu o ápice da tragédia da vida do Sr.*: ele, em uma fração, no espaço de um pequeníssimo tempo, na posição de quem não tem escolhas, aceitou deixar de querer continuar vivo. Desistiu, portanto. Entregou-se para o que não bem se sabe o que e sentiu, por fim, uma indecifrável dor, como que se fosse ela, a última sensação dos nervos, uma parenta que o tivesse acompanhado por toda a vida e viesse ali no ritual fúnebre de sua despedida.
O corpo do Sr.*, já no chão, inerte e ensangüentado, misturou-se à terra suja do local e tomou outros tons: os pálidos, da carne que intentava a inércia, e os fortes, da terra e do sangue. Pouco depois, quando finalmente tudo se acalmou para ele, quando o defunto calouro não mais podia ver, escutar, reagir, respirar, foi que se ouviu, do fundo do ambiente, um grito. Era sua esposa, a Sra.¢ grávida não sei bem se de três meses, de feto normal, ou se de oito, de feto atrofiado. O que importa é que foi essa senhora, de cabelos arredios, que mais pareciam os da caipora, quem acompanhou todo o processo que, em compêndio, era o de levar o corpo do Sr.* para o ITEP, na Ribeira, no intuito de oferecê-lo às famintas lâminas de poucos médicos e muitos ajudantes, e, depois, para o cemitério, com propósito semelhante, só que em lugar de legistas humanos, haveria legistas vermes... Ou, talvez, outros vermes, também legistas.
De fato, foi uma das equipes do ITEP ao local do acontecido. Lá, após os procedimentos normais que dão preguiça de narrar, trouxeram tanto o corpo do Sr.* quanta a Sra.¢ para o prédio da instituição. Ao chegar ao referido lugar, o corpo foi levado ao interior para a necropsia de rotina. A mulher, por sua vez, ficou nos corredores, enfrentando a novidade da situação. Aproximou-se então um outro homem, o Sr. #, que lhe informou que precisava de urna das córneas do Sr.* para transplantá-la no próprio filho, já há algum tempo na terrível fila dos transplantes.
A Sra.¢, com movimentos bruscos e desordenados, não entendeu a situação, negou veementemente a possibilidade de doar os órgãos do marido. Mais que isso, pensou até em destratar o Sr.#, ou melhor, chegou a ensaiar a ofensa, até que, mudando a estratégia, o Sr.# lhe disse que pagaria mil reais para ajudar no enterro do falecido. Após uma pausa, esclareceu que pagaria, é claro, desde que ela concordasse com o transplante. Ah, se fosse Marcela o nome da Sra.¢ ou se fosse eu como Machado de Assis, diria que ela brigou pelas córneas do marido durante cinco curtos minutos e mil longos reais. Com efeito, a Sra # prontamente aceitou a oferta, faltava-lhe apenas assinar o documento de doação e receber o dinheiro por tal assinatura. Tudo isso, claro, no exercício daquilo que chamam de informalidade jurídica dos atos que legalmente nunca se dariam por impossibilidade jurídica do objeto.
Fato é que, em tal momento, as sobrancelhas da Sra.¢ mudaram, ficaram mais brandas... Nunca soube se foram os cinco minutos ou os mil reais, o fato é que logo se conjeturou a ligação entre eventos econômicos e temporais com os de natureza fisiológica. O Sr.#, por sua vez, sentiu um certo arrependimento. Notou, depois, que teria conseguido a córnea do morto por bem menos. Esboçou uma testa franzida, um olhar de raiva, uma boca com os cantos para baixo... Mas, logo depois, sentiu também uma recriminação por tal pensamento quando considerou que dar de volta a visão ao seu filho valia um valor fechado, completo: -"mil é número bonito"- mudava a expressão do rosto e começava o novo argumento.
E assim foi feito. Retirou-se a córnea do Sr.*, que, talvez por ter tido o olhar oblíquo por toda a vida, passaria no início da morte a tê-los como dois poços secos: profundos e vazios, retos e inocentes. A membrana e disso, mesmo se pudessem, não entenderiam nem o Sr.* nem a Sra.¢ seria como a continuação da vida do marginal nos olhos de outra pessoa. A córnea era a testemunha muda de duas realidades, de duas vidas, de duas mortes. Alguns chegaram a invejar o projeto de sua existência, que superou todas as possibilidades de um só homem.
De fato, a córnea foi levada a uma clínica especializada e dormiu em soro fisiológico. Seria a sua única noite em que tragédias não se lhe passariam pelas células translúcidas. No outro dia, bem cedo pela manhã, lá iria o filho do Sr.# no intuito da operação. Colocaria no próprio rosto aquilo que presenciou a morte de tantos, a miséria de outros, a infortuna de todos eles. Levaria não como hospedeira, mas como parte constituinte de si mesmo, o que pertencera ao marginal, cuja estirpe fora, pelos do Sr.#, tantas vezes excluída da espécie humana.
Quantos são os que dizem que as pessoas do tipo do Sr. não mereciam nem ser chamadas de homens. Mesmo assim, o Sr.# e seu filho subjugaram todas as ideologias e preconceitos, abafaram tudo o que existia e preferiram, por fim, ver com mais clareza o dia a ter que se acostumar com a obscuridade dos preconceitos e da noite. A córnea, por sua vez, foi bem sucedida. Foi ver um mundo mais brando e, se pensasse, acharia ter sido transplantada para um novo planeta, tão diferente do que presenciara, mas, curiosamente, que tinha um ponto de intercessão com o outro, de sorte que bem se ouviria de alguém se ele dissesse que, ao que parece, na sociologia das classes sociais diferentes, não há misturas nem na vida nem na morte, com exceção às histórias de algumas de suas córneas.
.. Tassos Lycurgo é professor da UFRN
Obs: Imagem retirada do texto do autor em seu livro ImageminAção – Contos do Sertão, da Cidade e do Cais.
Ilustração de Alexandrina Viana criada especialmente para o conto.