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A nossa existência e tudo o mais nesta Terra, com ajuda da experiência que adquirimos com o transcorrer do tempo, sempre nos treina para ver o mundo segundo uma determinada ordem dos acontecimentos. Habituamo-nos a levar às concatenações tudo que vemos segundo uma lógica cronologicamente organizatória dos fatos. Primeiro, o fruto verde; depois, o maduro; por último, o podre. Continuamente aprendi as coisas assim, tendo como certo que a natureza impunha certa ordem a tudo que existe.
Eis por que sempre ouvi dizer que filho enterra o pai, que enterrou o avô. Jamais tal sentido dos famosos episódios propiciadores das chamadas gerações havia sido por mim questionado ou mesmo colocado, nem de leve, sob suspeita ou dúvida. Isso, nada obstante, mudou na primeira dúzia dos dias de março de dois mil e cinco. Era um sábado e lá se via, em um cemitério desta cidade, aparente rebeldia na seqüência em que se dão os acontecimentos. Ali, sob a escaldadura do sol e rasgando um tapete de grama verde, surgia um túmulo em que passou a jazer um caixão branco, pequeno, com o corpo de uma menininha linda, de apenas oito dias de vida.
Acontecimentos como esses, de tão ímpares, marcam-nos o pensamento como o escultor o faz na pedra: sem voltas, para nunca mais apagar. E não apenas o que se pensa, mas também o que se sente. Ah, em relação aos sentimentos do pai, algo estranho acontece: de tão grande que é a dor, ela parece superar o coração do homem e o que ele experimenta é algo assim como se houvesse também morrido, embora paradoxalmente saiba que continua vivo. Do que sente a mãe, perdoem-me os leitores, mas, por mais que queiramos, o vernáculo, mesmo que pudesse utilizar todas as palavras de todos os dicionários do mundo, ainda não conseguiria dar conta: estamos, aqui, naquela que seria, se o Rosa assim o quisesse, a quarta margem do rio.
Quarta margem, sim, pois errou quem disse que morremos apenas uma vez. Naquele cemitério sob o sol do sábado, o pai morreu e continuou vivo; a mãe, idem, mas com esse pronome elevado à infinitésima potência... Ela, mesmo sabendo da morte da filha, mesmo sentindo o que sentia, continuava a produzir leite... Mas para nutrir a vida de quem, meu Deus?! De quem?! Eis a invenção pela natureza da autoflagelação involuntária: o corpo, contra si mesmo, se tortura e, além disso, atormenta, mortifica e aflige outros corpos.
O pai, que não mais tem viva a filha, continua a ver a mãe, impotente, sem poder controlar o próprio corpo, que gera alimento, que seria fonte de alegria, mas era fonte de rememoração da morte... Pai e mãe morreram e o fizeram várias vezes... E ainda hoje morrem... Ainda hoje visitam a quarta margem do rio...
O que fazer?! Não se sabe... De tudo, as palavras são pequeníssimas: simplesmente, desservem, podem ser jogadas fora e o silêncio traz mais semântica à descrição da situação do que todos os vocábulos juntos. Talvez – e apenas talvez – inda se consiga tangenciar o que ocorreu uma poesia de título e versos inexistentes, em que se deixe a folha em branco, para sempre... Devo, ainda assim, repetir: apenas talvez...
Sabe-se, contudo, que em situações tão singulares, sempre há mudanças bruscas: os que se envolvem verdadeiramente com a situação são modificados em sua estrutura, em sua essência e nunca voltam a ser os mesmos. Esses passam a ver, por exemplo, que desde as suas mais simples ações até as mais complexas, todas, unidas e diante da morte da menininha, não transbordam os limites de um só conceito: o da vaidade.
Ora, tudo no mundo, brigas, batalhas, desilusões, orgulhos, revoltas, dedicações desproporcionais ao trabalho, à carreira profissional, a qualquer coisa, tudo, enfim, deita-se ao chão de cabeça baixa, veste a roupagem da impotência e, diante dela, passa a reconhecer as jóias da vaidade que adornaram uns e outros em tantos momentos. Para que tudo isso?! Diante daquele corpo que, ali, seria entregue à terra, tinha-se a certeza de que todo o universo cabia em uma caixa de fósforos e, em algum momento, chegou-se até a seriamente considerar ter o pensamento de que nada – absolutamente nada – valia a pena.
À frente de que os pais sejam tomados pela loucura e pelo desespero, antes que o desvario carcoma-lhes até a última noção e até o derradeiro pensamento, lá está a verdade: Deus assim o quis, assim permitiu e sempre com o indiscutível intuito de imprimir à vida de todos os que foram atingidos pela morte da menininha uma semente em suas almas. Eis a semente que, se assim o quiserem, se transformará na árvore frondosa do melhoramento de cada um de nós como pessoas, como homens e mulheres, como esposos e esposas, como pais e mães, como seres que riem e que choram.
Para os que crêem na Bíblia e no Jesus vivo, a morte da menininha é motivo de alegria: todas as crianças, até certa idade – a idade da inocência –, são imaculadas dos pecados, puras e, portanto, são automaticamente salvas e glorificadas. É, nesses termos, um privilégio morrer naturalmente em tenra infância, quando ainda não se possui a faculdade do entendimento completo. Eis a verdade que nessas horas há de encher o coração dos pais: ao contrário dos adultos, que precisam justificar a sua vida, as crianças já são parte de Deus e tanto o são que, mesmo morrendo tão cedo, ensinam-nos mais do que todas as ciências e todas as filosofias juntas.
A menininha ainda nem falava, mas sua curta vida e repentina morte foram como um tratado em vários tomos, cuja tese central era a de que todos e qualquer um, na perspectiva estreita desde mundo, somos nada, pois tudo aqui é repetitivo e enfadonho, exceto o que vem de Deus. Foi assim que o tempo conseguiu trazer os pais à Terra, que o tempo, que nunca cura feridas como essa – ao contrário do que os desavisados dizem –, ensinou os pais a conviver com a chaga, com a dor, que, mesmo sem pedir licença, instala-se e se torna uma companheira, inseparável embora indesejada, mas não mais capaz de destruir e aniquilar até as cinzas aqueles que sofrem.
Foi assim, em forma de agradecimento a Deus, que os pais puderam, de maneira pública e privada, manifestar a alegria de poder ter convivido por quase nove dias com Lissa, a menininha, e também por terem ingressado em um processo tão radical e severo de ensinamento que, o que aprenderam, mesmo que não queiram, haverão de levar pela eternidade.
Obs: Imagem retirada do texto do autor em seu livro Variações do Indizível – Ensaios de Risco.
Ilustração de Victor Negreiro criada especialmente o ensaio.
*Tassos Lycurgo é Professor Adjunto da UFRN e Advogado (OAB/RN); É Doutor em Estudos Educacionais – Lógica (UFRN), com pós-doutorado em Sociologia Jurídica (UFPB); Mestre em Filosofia Analítica (University of Sussex, Reino Unido); Graduado em Direito (URCA) e em Filosofia (UFRN). Atualmente, leciona as disciplinas Direito Processual do Trabalho e Elementos de Direito Autoral e Legislação Social na UFRN. Página Acadêmica: www.lycurgo.org