domingo, 22 de maio de 2011
ASSOMBRAÇÕES
Maria Inez do Espírito Santo
www.mariainezdoespiritosanto.com
No meio da noite, acordo com o barulho surdo de um corpo que cai, pesado.
Wellington, enrolado num lençol branco, foi lançado ao mar, cumprindo um ritual macabro...
Em Realengo, Bin Laden foi sepultado como indigente. Ninguém quis reconhecer seu corpo.
No distante oriente, um homem vivia entre muros e não deixava vestígios de seu lixo.
No Brasil, um monstro se isolava cada vez mais, armando-se para assassinar a esperança.
Mas agora, em Washington, há orgulho na declaração:
- Assassinamos um homem desarmado.
No Rio de Janeiro, é transformado em herói, aquele que aperta o gatilho certeiro.
As testemunhas ouvidas , nos dois casos, são as crianças. Entrevistadas, elas balbuciam sobre o que viram. Mas elas afirmam que viram!
E eu vos digo: ELAS ESTÃO VENDO TUDO!!!!!!
Como aconteceu com o menino, do conto de Andersen[i] - , que era o único capaz de declarar que o rei, vaidoso de seu novo traje, estava, em verdade, nu!
Na semana anterior, houve, num reino distante, um casamento real. Um novo conto de fadas tenta reeditar um outro, mais antigo, que acabou em tragédia, sufocada em meio a insinuações poderosas, que mesmo registradas até em filmes, não chegam sequer a arranhar a pompa da realeza, que quer a todo custo ser feliz para sempre. Como é possível que, em nossos dias, ainda se dê tanto valor à distinção de classes, que só faz se ressaltar, quando tratada como se fosse um fato superado, na aproximação tão alardeada entre plebeus e nobres, por exemplo?
Enquanto os ecos dos sinos, que anunciavam a festa, ainda nem bem tinham se dissipado, daqui e dali, algumas vozes atrapalham a nuvem cor de rosa enlevante, se elevando para pedir provas de que Bin Laden foi mesmo morto.
Misturando as histórias, de que dormiram empanturrados, querem todos voltar ao conforto dos bons sonhos, sabendo que o Dragão foi liquidado e que o Príncipe exibirá sua cabeça, triunfante.
E que cadáver é este, que não pode aparecer?
No mito indígena brasileiro (Akarandek )[ii], quando, querendo calar, às pressas, a mãe que hurra de dor, pela suposta morte da filha, os índios enterram o corpo decapitado da moça, condenam a cabeça voadora (que ainda não retornara de sua caçada noturna em busca de carne) a se tornar um Tchopokod – uma alma penada. Quando chegar a luz do sol, ela não encontrará mais seu corpo, que deixava amorosamente, ao lado do marido, cada vez que se afastava, para saciar sua fome.
No mundo de hoje ( ao qual Levy Strauss declarou sua estranheza, pouco antes de morrer, e de que Bergman se apartou deliberadamente), Mal e Bem, partes de um mesmo Todo, são separados na ilusão onipotente de um possível controle e o cheiro fétido dos restos do Mal, que julgamos poder destruir definitivamente, espalham-se a nossa volta, reforçando a lição deixada pelo história de nossos ancestrais .
A eterna luta, estruturante, entre o Bem e o Mal parece estar chegando ao fim. E que triste será esse fim! Porque as fronteiras indispensáveis da ambivalência se desfazem, quando, em nome da conservação de Valores(?), se destroem as mais mínimas noções de humanidade e de respeito à Vida. Tudo vira ambiguidade e perversão.
Somos todos Bin Laden. Mortos-vivos. Descartados, quando nossos aspectos cruéis não estiverem mais a serviço dos poderosos.
Somos todos Lady Di. Mortos-vivos. Condenados a sermos tornados lendas inócuas, para que não seja preciso reconhecer nosso poder mítico, transformador.
No meio da noite, as muitas mortes não suficientemente pranteadas se juntam em mim, numa dor quase insuportável. Não por vidas miseráveis isoladas, de seres humanos tão imensamente infelizes. Até porque a vida individual é mesmo muito breve. Mas pela perda irrecuperável de um resto, em mim, de dignidade humana. Pela vergonha que sinto dessa sociedade a que pertenço e pelo fim, que assustadoramente parece vir se aproximando, da crença na possibilidade de mundo melhor.
[i] - “Os Novos Trajes do Imperador” do livro “Contos de Andersen” – Ed. Paz e Terra – Hans Christian Andersen
[ii] Recontado no livro “Vasos Sagrados” – Ed. Rocco – Maria Inez do Espírito Santo
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