Continuo achando que o culpado de tudo foi a companhia de aviação, pela demorada parada no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, onde permaneceu, por mais de duas horas, a espera de uma equipe de tripulação para que o voo, em direção a Porto Alegre, prosseguisse. Duas horas e meia, no final da noite e início da madrugada, e a gente ouvindo a mentira da explicação de que a equipe esperada estava chegando de um voo internacional. Ora.
Mas, deixemos de lado o fato. O importante é que, com a aeronave no solo, uma libélula deve ter chegado e, sem aquilatar do incômodo que sua presença poderia causar, afinal não detinha bilhete de passagem para legitimar seu ingresso, ali permaneceu, discretamente escondida. Só quando a aeronave subiu é que o inseto, talvez perturbado pela altura da posição de cruzeiro, caiu na besteira de dar um voo, em busca, quem sabe, de lugar mais confortável e adaptado ao seu mecanismo de respiração.
Antes tivesse ficado parada em seu lugar, esperando a chegada no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Com o voo, raspou na cabeça dos passageiros dos últimos bancos, que se alvoroçaram. Senti um toque na orelha, pensando se cuidar do passageiro do banco de detrás do meu, que, num gesto involuntário, tocava na minha orelha direita. Mas, com o pouso da libélula na parte alto do banco da frente, é que percebo a presença do passageiro clandestino. Coitada da libélula. Foi caçada, sem dó nem piedade.
Imediatamente, um dos membros da tripulação avançou em sua direção. Antes mesmo que o passageiro batesse na libélula com uma revista, o tripulante já tinha disparado sua pancada. Só que, de forma delicada, o que provocou apenas a sua queda. A esta altura, o outro tripulante veio em seu socorro, para ajudá-lo na perseguição, dando a impressão, afinal, que o minúsculo animal perseguido era, por exemplo, uma cobra venenosa. A libélula, já sem forças, foi capturada no chão, enrolada em um papel, e, certamente, conduzidapara o vasilhame do lixo da aeronave.
Triste inseto, provavelmente foragido, quem sabe lá, do Complexo do Alemão, depois de toda a maratona policial para afugentar dali os bandidos do tráfego de drogas. Estávamos em janeiro do corrente ano. Devia descansar em algum lugar da pista do Aeroporto do Galeão, quando resolveu, numa decisão que lhe valeu a vida, se abrigar na aeronave, no que, cavou a própria sepultura, já que não permaneceu viva mais de três horas, acabando massacrada pela violência de um tripulante, esmagada em meio a uma revista e, sem o formalismo do registro da maratona vivida.
É difícil imaginar que, naquela mesma madrugada, dormiria, para sempre, tão distante do seu habitat natural, sem direito mais a voar, encontrando como sepultura o lixo do Aeroporto de Porto Alegre, lugar, provavelmente, não digno de uma libélula carioca.
Publicado no Diário de Pernambuco