segunda-feira, 21 de março de 2011

A SAGRADA FAMÍLIA


Padre Beto


Todos os dias, uma jovem visitava o famoso museu do Louvre e, por horas, ficava contemplando uma natureza morta com o título "Pão e Vinho". Já com grande curiosidade, o vigia do museu resolveu perguntar à jovem o que existia naquele quadro de tão fascinante para que ela viesse apreciá-lo todos os dias. A jovem então respondeu: "Nele eu vejo coisas que eu nunca tive: família, lar, crianças, alegria e um amor verdadeiro".

O ser humano vive e se desenvolve em uma síntese entre razão e emoção. Na dinâmica entre nossa racionalidade e nossos sentimentos, acabamos por ordenar e estruturar tudo que existe em nossa volta. Assim, o ser humano cria desde funções para objetos até instituições, costumes e tradições para que tenha condições não somente de sobrevivência, mas também de realização pessoal. Em outras palavras, a nossa natureza humana, ou seja, todo o nosso universo humano, é moldado, construído por nós mesmos. Por isso possuímos uma grande diversidade cultural e esta, por sua vez, se transforma no transcorrer da história. Assim, torna-se difícil responder perguntas do tipo: O que significa natureza humana? O que é viver como ser humano? Diferentemente dos homens e mulheres de nossa civilização, um indígena, ainda não inculturado em nosso universo, vive nu, mora em casas coletivas e não possui propriedade privada. Podemos afirmar que um indígena vive mais de acordo com a natureza humana do que os homens de nossa civilização? A resposta é simples: cada um vive de acordo com a natureza que construiu. Não existe "a" natureza humana, mas aquela que surge do próprio ser humano. Com certeza, teríamos grandes dificuldades se, de uma hora para outra, vivêssemos na floresta, nus e na coletividade de uma tribo. "O homem é o único animal que pode se desumanizar", afirmava o pensador alemão Goethe. A abelha não pode se "desabelhar", o cachorro se "descachorrar", mas o ser humano pode moldar a sua natureza, tornando a vida mais ou menos agradável. Porém, o grande desafio para o homem, principalmente neste nosso século 21, é o respeito diante das diferenças, ou seja, a tolerância diante das diferentes construções da natureza humana. Cada vez mais se reconhece o erro da padronização de estilos de vida e a necessidade de uma democratização do comportamento humano. Democracia implica a aceitação do diferente e a eliminação de padrões obrigatórios para todos.

No universo construído pelo ser humano encontramos a instituição família. Acredito que a maioria das pessoas de nossa sociedade é da opinião de que a família possui uma grande importância para o nosso desenvolvimento pessoal. Muitas vezes podemos ver em carros adesivos com frases do tipo "Sou pela Família", "Família é um projeto de Deus". Mas afinal, o que significa a família? Qual o fator que define um grupo de pessoas como família? Desde o século 19, o homem ocidental possui uma imagem idealizada da família que acabou se tornando um "caminho obrigatório", uma padronização: família é o núcleo constituído de pai, mãe e filho. O paradigma que reforçou este modelo no ocidente cristão foi a visão superficial da "sagrada família": José, Maria e Jesus. Porém, se olharmos com mais atenção não encontraremos na família de Jesus o modelo idealizado pela mentalidade ocidental. José se une a uma mãe solteira, aceitando o filho ilegítimo. Como este núcleo familiar, podem ser percebidos em nossa sociedade outros exemplos que não se enquadram naquilo que costumamos chamar de "família ideal": avós que vivem com netos, mãe ou o pai com seus filhos, casais sem filhos, irmãos que vivem juntos, casais homo e heterossexuais, pais com filhos adotivos, etc. O que torna todos estes e outros grupos humanos uma família é um único fator: a relação afetiva existente entre os membros e através desta o desejo de que todos possam se desenvolver na vida e alcançar um bem-estar. Mesmo a aproximação geográfica, ou seja, o viver debaixo de um mesmo teto não constitui um fator determinante para se ter uma família. Existem pessoas que moram juntas, mas não possuem nenhuma relação de afeto e interesse; em contrapartida pessoas que moram separadas e até mesmo distantes podem muito bem constituir uma única família. O que realmente define a família é a relação afetiva e o esforço mútuo pelo bem estar de todos, o resto são padrões culturais. Nos países árabes encontramos famílias poligâmicas, na África famílias poliândricas, no ocidente as monogâmicas. A diferença entre todos estes modelos não passa de "glacê no bolo", o que realmente define e possibilita a formação do ser humano é o afeto e o carinho com que ele é recebido e acompanhado em seu desenvolvimento. Aqui está o valor central que torna uma família verdadeiramente sagrada. "Aprender a ver é o aprendizado mais longo das artes" (J. de Goncourt).