domingo, 6 de março de 2011

QUINTA LIÇÃO: ÉDEN


Maria Inez do Espírito Santo
www.mariainezdoespiritosanto.com


Na conversa com o menino, hoje cedo, ele me dizia da programação de sua escola (antroposófica) para este ano:

- Vamos estudar sobre o Diabo.

Demorei alguns instantes para me refazer da surpresa e emendei:

- Ah! Vocês vão estudar sobre Lúcifer?

- É. Ele é o Diabo. O das sombras...

Conversamos ainda um pouquinho sobre a origem etimológica da palavra diabo, que remete à divisão e do nome Lúcifer, que está impregnado de Luz.

Falamos depois do medo, dos desabamentos recentes na cidade onde ele vive, dos novos heróis dos desenhos animados que representam as forças da Natureza (infelizmente não guardei os nomes deles para repetir aqui) e depois nos despedimos... Tinha sido uma boa conversa e estávamos contentes.

Eu precisava vir a Petrópolis e escolhera tomar o caminho que atravessa o circuito Terê-Fri. Já havia ouvido falar que este era o pedaço mais castigado pela última tragédia. Mas eu tinha necessidade de ver, de perto, o que havia acontecido com a paisagem que tanto me encantou, desde quando, há 21 anos, passei a ir ao sítio Retiro regularmente.

Tudo era novidade, naquele tempo, e ir descobrindo aquelas vilazinhas, que torneiam a estrada, me trazia uma sensação tão grande de conforto, que já chegava ao alto da serra inteiramente à vontade. Durante muito tempo foi assim... Depois, um dia, percebi que tinham mudado a fachada de uma certa igreja que me lembrava o filme “A Filha de Ryan”... Reformada, ela perdeu completamente seu cinza severo e determinado, que, constrastando com o verde luminoso da vegetação, mantinha-a completamente irreal, quase estática em outra dimensão e nada ameaçadora, portanto. Com a transformação, ganhando cores e novas dimensões, ela perdeu o quê de encantamento.

Aos poucos, durante esses anos, foram aparecendo muitas novas casas naqueles lugarejos. E bares cada vez mais barulhentos; e quebra molas cada vez mais altos e quase tão agressivos quanto a violência da velocidade que querem evitar. Por fim, um trecho da estrada se travestiu num misto de favela e acampamento, ladeado por camelôs, carros e motos de oficinas improvisadas. Nunca consegui entender exatamente o que acontecera ali, para que Venda Nova se transformasse nesse feio brechó de quinquilharias expostas a céu aberto, que se vê agora.

Ultimamente tinha também o mau cheiro dos agrotóxicos empestiando o ar... Chegava a arder nos olhos e no nariz, em algumas partes do caminho. A viagem cada vez menos interessante, continuava, no entanto, a me permitir sentir a grande escalada que oferece, gradativa e quase suavemente, na companhia dos montes verde-azulados que zelavam para que eu não me desviasse da meta.

Bem que muitas vezes eu quis alterar o roteiro. Mas não ousei. Tive vontade de ir conferir que lugar era Prainha, anunciada na tabuleta da beira do caminho. Pensei em me arriscar no Sumidouro, oferecido em outra tabuleta... Já Campo do Coelho e Córrego Dantas, esses, me seduziram mais irresistivelmente e cheguei a ver de perto muitos de seus tesouros... ainda a tempo.

Mas hoje cedo, ao pegar a estrada, eu já ia com o coração miudinho, temendo o que estaria à minha frente... E não houve engano. Logo de início, as montanhas rachadas, com a carne aberta para o céu, exibiam seus conteúdos pétreos, como órgãos internos arrancados à força, esparramados por cima de tudo o que puseram transpor, na fúria das águas, que as lavourou (como costuma dizer a Conceição, mulher guerreira do Retiro, que de terra sabe muito).

Dá tristeza ver! Traz perplexidade e compaixão, ao mesmo tempo. Invadiu-me uma angústia assustadora não localizar mais os caminhos que me levariam a tal Prainha. Esse lugar, a que não se pode mais chegar, ficou lá, perdido em algum ponto, derramado e dissolvido no meio da paisagem desfeita.

Lembrando a conversa com o menino, voltou-me também o texto de Leonardo Boff (que me enviaram por email) e que fala de uma Mãe Terra magoada e ressentida, cobrando a conta. Depois recordei a crônica de Rubem Alves, destronando o Deus em que já acreditou com tanta fé e que, segundo ele, é capaz de permitir que tal sorte de desgraça aconteça.

Hoje, no entanto, não senti como eles. Pareceu-me, de repente, numa lucidez vinda talvez das sombras, que tudo na Natureza está apenas buscando harmonia. A Harmonia maior, perdida de há muito. Não existe, portanto, rancor, apenas num movimento brusco, dentro desse enorme desequilíbrio, necessário para se chegar de novo à integração: o caminho entrópico.

Paraíso desfeito, a luz excessiva dos raios, tudo lembra aquela divisão, chamada diabólica... E eu me vejo repetindo para mim mesma que é preciso confiar no processo da Vida, que é contínuo, ininterrupto trabalho de deuses amorais , tão inalcançaveis quanto incansáveis.

Prosseguindo, encontro a serra Teresópolis-Petrópolis, que nem se refizera dos enormes estragos das chuvas de dois anos passados e que mistura, agora, obras resultantes dos dois desastres, na tentativa (que tomara não seja vã!) de conseguir continuar a ser suporte para os que precisam transpor a distância entre as duas cidades. A cuidadosa plantação de forragem feita de forma laboriosamente artesanal, nesse período, com a finalidade de segurar as encostas desmoronadas e que se só agora começava a se fixar, está, em muitos trechos, perdida entre as pedras e o barro caídos.

Mas, percebendo, durante a viagem, alguns pedaços (na primeira estrada) que nada sofreram e que mantêm uma mata soberba, fechada, ainda exuberante, e observando com atenção as marcas de muitas partes mais altas das montanhas, com cobertura vegetal inadequada, quase todas atingidas certamente pelos raios inclementes daquela noite, percebo a urgência de retomarmos o ciclo de conservação.

As exageradamente extensas plantações de produtos hortícolas, os pastos de proporções desmedidas para alimentar animais em cativeiro, os condomínios que a paranóia do convívio fertiliza, as queimadas criminosas que assolam toda aquela região a cada inverno (e de que temos sido testemunhas passivas), são todos herdeiros de um estilo de vida que pretende determinar mudanças radicais para a paisagem, mesmo a custa de descaraterizá-la impiedosa e arrogantemente, impondo a tudo um estilo ajardinado, mais ou menos elegante, mas sempre falso.

De fato, o que esta terra precisa agora é ter de volta sua Mata Atlântica. É isso que nossa Serra está buscando fazer ressurgir, mesmo que para tanto tenha que se virar pelo avesso. E o fará inteiramente, não tenho dúvida, se não corrermos a colaborar com sua cicatrização.

Se, em tempos ainda imperiais, foi possível reflorestar a Mata da Tijuca, por que não acreditar que podemos acudir essas montanhas desnudadas, devolvendo a elas a sua cobertura original?

Ando farta de me envolver com um mundo que passa o tempo separando diabos de anjos, para garantir que o Mal e o Bem possam ter campos determinados, ilusoriamente possíveis de serem gerenciados. Para mim, generosidade que tampona ferimentos, sem assumir olhá-los, é apenas piedade. Infrutífera, gerada por medo e pela incapacidade de respeitar o outro. Só aumenta a indignidade e a cobiça do ser humano. Assistindo a desorganização geral no atendimento aos desabrigados, nesse e em outros momentos passados e ao oportunismo de tantos, que vêem a situação catastrófica deste momento como possibilidade de ganhos e lucros, tenho que concordar com meu mestre, Elias, que afirma que o ser humano não presta mesmo. E aconselha: a gente precisa se esforçar muito para ser um pouco melhor a cada dia.

Quem sabe começamos este esforço plantando árvores, as eternas doadoras, símbolo perfeito dos ciclos sem fim? E radicalizo, boa arietina que sou: que cada um plante seu pé de alface e crie sua vaca no fundo do quintal, se quiser beber leite e comer carne. Porque, para que nossas crianças tenham água e oxigênio suficientes que as permita chegar à vida adulta, precisamos ter nossa floresta de volta. É urgente!

Minha parte, começo hoje. Deixo aqui a primeira muda. Replante-a você e zele por ela. E passe essa idéia adiante. Poderemos (quem sabe?)ver despontar sinais dos bons frutos, que as gerações futuras poderão colher!