Ivone Gebara *
A teologia feminista é parte de uma revolução cultural que ainda está em seus primeiros passos
O feminismo do século 20 foi precursor de mudanças significativas não apenas nas relações sociais e políticas entre mulheres e homens, mas igualmente na filosofia e na teologia, embora de formas bastante diferentes.
A teologia, desde a Antiguidade, quase sempre se caracterizou por um pensamento monoteísta com base filosófica transcendente, ou seja, uma base racional fundada numa visão metafísica da existência de um ser superior que seria o Outro de todos os seres criados. Esse Outro, Deus, entretanto, não fugia de uma concepção antropológica a partir dos parâmetros masculinos, revelando assim seus limites ontológicos.
As filosofias do século 19 e 20 retiram o Deus metafísico de seu Ser transcendente, decretando a morte da metafísica. Esse movimento de desalojamento de Deus da habitação do Ser e de sua realocação sempre além do Ser evitou, para alguns, o seu aprisionamento conceitual e a defesa absoluta desse modelo de divindade como verdade única. Dessa maneira, inaugurou-se uma visão diferente do ser humano que serviu de forma particular ao feminismo assim como a uma crítica sobre o uso político das imagens de Deus.
As feministas não apenas continuaram a desalojar Deus dos céus e das essências e existências perfeitas, mas revelaram sua cara histórica masculina, assim como suas preferências históricas. Segundo uma referência crítica da metafísica, pode-se dizer que o ser em si, o ser transcendente e imanente, para além de todos os seres tinha de certa forma um dublê masculino terrestre representado pelas autoridades políticas e religiosas. Elas sempre determinaram os rumos da política e da religião, da moral e dos costumes, das guerras e da paz. Fizeram com que o ser perfeito metafísico se imiscuísse em questões de regionalismo partidário e impusesse normas públicas e privadas de comportamentos para os fiéis que deveriam obedecer a sua vontade e amá-lo acima de tudo.
As mulheres foram um foco importante e um sustentáculo da política de submissão, visto que a cultura patriarcal lhes havia designado um lugar social de dependência em relação às figuras masculinas e, por conseguinte, de dependência de seus corpos em relação a uma pretensa vontade divina.
Um Deus contrário à emancipação feminina
O feminismo na teologia desenvolveu-se a partir da segunda metade do século 20 inicialmente em alguns países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos. As teólogas tomaram consciência do quanto o Deus criador e todo-poderoso era cúmplice do bloqueio masculino de suas reivindicações sociais, políticas e religiosas assim como expressão da opressão e dominação sexual que viviam. O Deus anunciado em sua cultura e cultuado nas igrejas não era aliado da emancipação feminina. Ao contrário, era usado como um entrave para as conquistas das mulheres. A opressão feminina e a manutenção dos privilégios masculinos eram legitimadas por uma ideologia religiosa que naturalizou certos papeis sociais e funções biológicas e as elevou às expressões da vontade divina para a humanidade.
Diante da constatação crescente da dominação do ídolo divino masculino sobre suas vidas, as teólogas feministas começaram a introduzir a metodologia da suspeita e da desconstrução de conceitos teológicos (Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, Pecado, Bem e Mal, Encarnação, Redenção etc.) para verificar-lhes a origem e a pertinência em relação à experiência histórica e feminina. Estendeu sua investigação para os textos da Bíblia considerados Palavra de Deus e denunciaram o mau uso do texto em vista da execução de políticas que favorecem a uns e desfavorecem a outros. Percebeu o quanto a chamada transcendência era regionalista, masculina e sexista e aliada dos poderes de manutenção dos povos na ignorância e na alienação. A grande massa, salvo exceções, aprendeu doutrinas cristãs universais abrindo mão de sua capacidade de pensar. Tornou-se beligerante e sectária na defesa de suas verdades religiosas. O feminismo teológico convida a pensar de novo as próprias crenças e a situá-las a partir das necessidades dos diferentes grupos e dos diferentes tempos.
A teologia feminista desenvolveu-se na América Latina, África e Ásia a partir da década de 1980. Seu campo de atuação social é limitado. As teólogas feministas não são aceitas nos espaços institucionais dominados pelo clero e por pessoas convencidas da superioridade da imagem patriarcal de Deus. Uma das batalhas atuais importantes das teólogas feministas na América Latina é em relação ao poder religioso que domina os corpos femininos. Por isso, introduzem a questão da dominação sexual na teologia, falam dos corpos destroçados pelo abuso sexual, sua redução a um produto do mercado, sua culpabilização religiosa como instrumento de manutenção da mesma lógica de dominação.
A teologia feminista é parte de uma revolução cultural dos séculos 20 e 21, uma re-volução que ainda está em seus primeiros passos. Se persistir nessa luta de desnudamento de certos conceitos religiosos em favor da dignidade feminina, estará sinalizando um novo momento criativo na história das religiões, visto que as mulheres estarão expressando dentro das diferentes tradições religiosas sua experiência, seus valores e sentidos.
* Filósofa e teóloga, feminista e escritora